sábado, 30 de novembro de 2013

A importância das próteses

Rua Antônio de Albuquerque, entre Sergipe e Levindo Lopes. Foto da autora, 2013.


Difícil saber quando começam as próteses, pois remontam à época da pedra lascada, ou antes. Parecemos sempre ter precisado de algo que fosse além de nossas possibilidades físicas, que ampliasse ou recuperasse o potencial de nosso corpo e da nossa mente tal como nos foram dados pela natureza.  Passado todo esse tempo, nossa coleção acumula próteses individuais e coletivas, e para vários propósitos. Economizamos as pernas andando de ônibus, usamos lentes intraoculares que nos devolvem a visão, gravamos em máquinas o que vemos, para não esquecer; recuperamos a retina, a pele - e seu viço - com laser; que usamos inclusive para levantar e documentar tridimensionalmente os volumes naturais e edificados que compõem a pele de uma aglomeração urbana para melhor a vermos e nos havermos com ela. 

Tornamo-nos hábeis em produzir próteses que ultrapassam suas próteses originárias, fazemos próteses para as próteses - o laser que vai além da luz, os edifícios, que empilham moradias em máquinas-de-morar. A cultura também é uma prótese. Ela acolhe e limita nossas pulsões, dita o que não devemos fazer e até onde ir quando decidimos fazer algo. A cultura é uma prótese que vem em várias escalas, todas conviventes de algum modo. A cultura de uma nação, a cultura de uma região, de uma cidade, de uma empresa, de um grupo. Também vendida em porções individuais - pois a cultura é acima de tudo um  produto - observa-se que ela ocupa também um espaço que antes pertencia à moral. A moral é, por definição, de cada indivíduo, mas sua elaboração demanda trabalho. Um trabalho que se debruça sobre a consideração das coisas, inclusive da cultura. A moral permite ao sujeito enxergar-se  a si mesmo e ao contexto em que está inserido – munido para isso de um olhar crítico e questionador. Um olhar que pergunta, um olhar que pensa. É natural que a cultura  queira  anular essa capacidade das pessoas. É para isso também que ela foi criada. 

A cultura da obediência cega, a cultura do hábito acrítico, a cultura do desânimo; palavra que etimologicamente significa a negação de um potencial passível de existir em cada um de nós (algo que nos transcende e que recebeu por muito tempo o nome de "alma", ou "ânima", que também significa "vida"). Um indivíduo desanimado parece-me alguém  que ainda não é sujeito de sua própria história - ou que já foi jogado para fora dela pelo sistema que alimenta a cultura com que se depara no cotidiano. Segundo Lacan (Meu ensino, p. 77)  a cultura  “dispensa completamente a função de pensar”. Afinal, diz ele, em  que  se pensa? Pensa-se nas coisas que não se sabe, fazendo um esforço enorme para conseguir compreender. "É isso que se pode chamar de pensamento. Ao cogitar, eu agito, eu vasculho. Isso só começa a ficar interessante quando é responsável, isto é, traz uma solução o máximo possível formalizada." Se o pensar não puder produzir algo formal, ou seja transformador da forma estabelecida de se  fazerem as coisas, "por que nos deteríamos sobre ele?" Aqueles que são inclinados a pensar são imbatíveis, e a cultura está consciente disso. 

A cultura do status quo sabe que os que pensam já criaram os canais para destinar sua energia de vida, e que esta por ali flui, como um rio que corre convicto de seu curso. É aí que  a cultura cria, revira, distorce. Aproveita sua capacidade tão virtuosa  de criar limites – sem os quais nossos antepassados talvez tivessem se assassinado mutuamente até a extinção – e cria limites também para o pensamento. Mas não explicitamente, é claro. Para esse efeito ela faz uso de quê? Das mesmas próteses. A pós-modernidade parece ter vindo para tornar evidente que essas próteses têm pelo menos dois lados. A face com que inicialmente se apresentam parece suave e confiável, mas seu outro lado frequentemente é subversivo; seja da ordem estabelecida ou do aprimoramento da condição humana. Seu efeito depende de como se quer usá-las.

A subversão da nossa capacidade de nos aprimorarmos como seres pensantes - que dialogam por meio de palavras mesmo através do tempo [1] - é a forma mais cruel de tortura individual e coletiva que acredito poder existir [2].  Os “indivíduos-para-si” (ver o quadro abaixo) sofrem porque passam a vida submetidos ao desconhecimento de sua  capacidade de ir além de si mesmos. Assim torna-se difícil inventar modos de sair desse lugar em que foram jogados pelo sistema. Os sujeitos – indivíduos-para-si que já perceberam que o sentido da vida vai além da mera existência individual - sofrem porque conhecem o potencial da articulação com a alteridade [3], mas têm as mãos atadas, uma vez que seu pensar, seu agir, são cada vez mais bloqueados antes de tornarem–se palpáveis na realidade concreta que nos cabe transformar para melhor viver.  



A prótese burocrática  alia-se à prótese política, e à prótese cultural, e à prótese jurídica, formando um exército apocalíptico que mata os seres pensantes e agentes, "quase sem querer"[4]. "Tão correto, tão bonito" esse modo de fingir é, mesmo, como diz Renato Russo,"um dos deuses mais lindos". "Sei que às vezes uso palavras repetidas”, mas esse modo de fingir-se vivo [5] envenena os jovens desde a mais tenra infância de seu intelecto. O aborto é crime no Brasil, mas não esse, infelizmente. Só que essas estão entre “as palavras que nunca são ditas". O intelecto é algo que precisa ser nutrido e cultivado pra valer. Ele sim, é a nossa primeira prótese. Mas uma prótese que temos que trabalhar muito para produzir e aprimorar. 

Não há atalhos. Não há próteses capazes de nos tornar mais criativos, mais inteligentes, imediatamente e sem esforço. A inteligência é que é a prótese, entende? E os sistemas, e a cultura procuram distrair-nos com as outras próteses; os joguinhos, os seriados, as novelas, as drogas, as retículas em que se delineiam os edifícios e as cidades onde nos cabe viver, quase sem caber. É mesmo mais fácil jogar com peças quadradas e seriadas que desconhecem a droga em que estão enoveladas. A única prótese que ipso facto favorece a construção do intelecto chama-se "coragem". “Coragem pra querer”, diz Wisnik [6]. Alguns até nascem com um bocado dela, mas aprimorá-la é preciso. Só que esse impreciso processo não é sequer para todos; é só para quem quer, mesmo que não lhe caiba.



[1] Para esse diálogo transtemporal servem os livros e as cidades; verdadeiros livros de pedra onde os humanos escrevem sua história, mesmo sem querer.

[2] Parece-me que as melhores referências da pedagogia também pensam assim: Noam Chomsky, Henry Giroux, Donaldo Macedo e o mestre maior, Paulo Freire. Tanto que se referem ao que aqui chamei de cruel tortura como "Poisonous Pedagogy" (FREIRE, GIROUX et al, 1999).

[3] A essência da alteridade é a consciência da diferença que existe entre o "eu" e o "outro" (HELLER, 1977). 

[4] Alusão à música de Renato Russo, que tem esse título. Letra disponível em http://letras.mus.br/renato-russo/243675/, acesso em 30/11/2013.

[5] O filósofo Slavoj Zizek tem chamado esses seres que se fingem vivos, de "Zumbis", sobre os quais muito temos a aprender com o cinema contemporâneo. Zizek fala disso em http://www.lacan.com/zizdazedandconfused.html, acesso em 30/11/2013. Incrível.

[6] Refiro-me a um verso da primeira música que José Miguel Wisnik cantou no show "A Olhos Nus", com Ná Ozzetti, em BH, dia 23/11/2013. Impressionante como é poderosa essa letra, de cujo título não me lembro agora. Entendi que ela fala das coisas simples do dia-a-dia, aquelas que quando temos não nos lembramos de agradecer - como a casa e a roupa estendida no varal - mas quando se ameaçam perdidas, sofremos e pedimos ajuda a Deus. A árvore da foto é exemplo disso. Oxalá que esse monumento natural de Belo Horizonte não seja mais uma jogada [abaixo pela]/[baixa da] cultura que desmembra e arranca uma a uma as folhas do nosso livro de tronco e pedra que, já centenário e por tantos amado, mereceria ser tratado por todos com mais respeito.

*O título foi dado pela Ana Luiza, querida colega de trabalho que muito admiro.

Referências

CAYE, Pierre. Postface. In: ALBERTI, Leon Battista. L’art d’édifier. Paris: Seuil, 2004, p. 529-550.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. For what tomorrow: a dialogue. Stanford: Stanford University Press, 2004.
HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Peninsula, 1977.

FREIRE, Paulo; GIROUX, Henry A.; FLECHA, Ramón; MACEDO, Donaldo; CASTELLS, Manuel. Critical Education in the New Information Age. Oxford, England: Rownman & Littlefield Publishers, 1999.

domingo, 17 de novembro de 2013

Os sujeitos e seus sintomáticos sistemas orgânicos


Uma das maneiras de se pensar a favela é como sintoma. Isso a faz produto de "um fenômeno de recalque, que como todos os fenômenos de recalque, está ligado às necessidades do decoro." (LACAN, Meu ensino, p.74). A favela é produto desse fenômeno; dele provém, mas não sem provê-lo. Difícil de ser descrita a partir do vocabulário urbanístico convencional, a favela é referenciada como "formação espontânea do tecido urbano". Muitas vezes é por isso também reverenciada.

Povoada de fervilhantes excitações, a favela acolhe e produz necessidades pulsionais. Melhor definida por analogias que por conceitos estabelecidos, a favela articula-se a um repositório de representantes tanto de Eros quanto de Caos. Governada pela lei da saciedade e pela pulsão de repetição que resulta disso, sua carência primordial aponta para uma necessidade de organização e de decoro. O decoro de que aqui se trata é ciceroniano: temperança e moderação com que o sujeito exercita e aprende a regrar e controlar, através de renúncias parciais, a intensificação do desejo e de suas pulsões sem, contudo, negá-los.

Um dos efeitos da pulsão de repetição é a repressão da relação com o tempo. Essa repressão leva a reboque a supressão da capacidade de transformação. Um sintoma disso é o sofrimento. O sofrimento de ser alheio ao tempo, em todos os sentidos. Sem uma relação com o tempo, com a "Passagem das Horas", não há transformação. E de que transformação se trata? Transformação da qualidade de energia, pode-se dizer. Considerada altamente mobilizável, trata-se de conduzir essa energia para a produção de descargas mais proveitosas ao fortalecimento organizacional de que essa formação urbana ou suburbana carece.

Esse "organizacional" tem ampla significação: os órgãos do corpo e dos sentidos, os organismos que os reúnem e os colocam em relação, as instituições que, representando-os, fundam e viabilizam sua organização, seus limites, seu funcionamento conjunto. Uma transformação permeada pela vizinhança e influência do mundo externo, organizada para o acolhimento dos estímulos e a proteção diante deles (FREUD, 1933). Para funcionar dessa forma, é necessário haver uma compreensão desses estímulos e da potência dessa energia cuja mobilidade a torna tão valiosa quanto desafiadora. Não parece possível lidar com essa energia sem percebê-la pelos sentidos, inclusive através de suas relações com o desejo, o afeto, o pensamento.

Uma das maneiras de se abordar essa energia é interpelando-a por meio dos objetos.  Objetos que funcionem como representantes desse organismo que se almeja fortalecer, e que não bloqueiem a passagem dessa energia. É necessário acolhê-la, participando do trabalho de transformá-la em algo que favoreça o fortalecimento desse organismo. Um organismo aberto a sentir tudo de todas as maneiras, a poder ter todas as opiniões, a ser sincero contradizendo-se a cada minuto. Um organismo que não se priva de desagradar-se a si próprio, e que "se joga" ao amar as coisas e o mundo. Um organismo aberto a um diálogo contínuo e não-linear, literal e metafórico,  que desliza para o metonímico sem negar seus deslizes. Um organismo aberto a tudo isso e ao resto disso tudo. Um organismo em situação de passagem, errante, que assim se coloca para ter lugar e ir além dos tolos que erram desejando-o hermético, congelado. Um organismo cujo princípio é um não-todo onde sempre falta alguma coisa, mas a dor de viver não está ausente. A vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa, tanto mais doída quanto mais se sente e se roça contra as coisas (PESSOA, 1916). Mas, para o organismo que se inventa, é melhor a dor disso que o indecoroso sofrimento.


p.s.1. Os "issos" de que aqui se fala são inspirados pelo O Eu e o Isso, de Freud [1923] e pelas Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise, especialmente a de número 31 [1933]. O que Freud chama de Eu, passa aqui pela ideia do organismo que se almeja fortalecer. Evidenciam-se nessa articulação as influências de Alberti, Deleuze, Guattari, Richard Sennett. Desse último, chama atenção a reflexão sobre sistemas abertos e fechados, a que podemos ter acesso em http://www.youtube.com/watch?v=0uyHey4QuUE. A foto testemunha efeitos dessa disposição conjunta de sistemas que assumem a condição de sintoma até no nome da região em que se instauram: "Porto Maravilha", a afirmação de uma negação? (Rio, março de 2013). Mas este texto também não é sem uma articulação seminal com Lou Salomé [1911] e Fernando Pessoa [1916]. Deste último, chega a apropriar-se de frases inteiras da "Passagem das Horas", cujo teor pode ser apreciado na íntegra em http://arquivopessoa.net/textos/814. De Salomé (The Erotic, 2012) fica o recado: em toda esfera de vida animal, as pulsões se sujeitam às mesmas leis do desejo e da saciedade, da excitação diminuída pela repetição, e da necessidade de mudança que resulta disso. O trabalho do intelecto pode tornar o sujeito consciente desse processo, e afastá-lo das intensificações de padrão animal, ao imprimir critérios e limites à energia psíquica que o coloca em ação.

p.s.2. Este texto também pode ser lido substituindo-se "favela" por "condomínio fechado", "espontâneo" por "anti-espontâneo" e "fervilhantes" por "petrificantes".

sábado, 26 de outubro de 2013

Reflections on the Urban Age Conference - Rio 2013* #UARio #LSECities



Last week we had the opportunity to hear the voice of fear. "Fear" was one of the words used by city planners from more developed countries to describe their feelings about contemporary urban transformations. Their fears denote an awareness of the responsibility not only in managing and investing the money provided by citizens and institutions, but also in opening up opportunities and the best possible conditions for communities to realize and define how they want to live. However, all this fear doesn´t stop them acting and considering the human cost involved in each decision. Nonetheless, such a fear doesn´t prevent them from regretting some decisions taken occasionally. In the meantime, not to deny fear seems to be the first step towards overcoming it.

In Brazil, the situation is quite different. A generalized attitude of denial is typical. The chaotic situation is not only denied but spread far and wide and masked by the manipulation of numbers and land-use. Rhetoric of the type "we are getting there", apart from representing the negation of fear, betrays an unbearable ignorance of how lost one is within a broader scenario, and denotes foolish ideas about how to get “there”. In many cases, what or where this "there" means is not even dealt with. From some of the words used on Friday morning one could catch a glimpse of what would become clear in the afternoon. Maybe Freud can explain it. Fetish, schizophrenia, paranoia are some of the words in the vocabulary of whoever dares to discuss the urban makeup in Brazil. None of the terms above relate only to the planning infrastructure per se, but also, and even more, to the effects it provokes. Psychotic realities - created through some top-bottom approaches - don´t necessarily lead to a better quality of life for ordinary citizens. These parallel realities include large corridors for mass or individual transport, sets of identical dwellings piled up in undistinguished buildings stamped over areas often in disregard of their assets (including topography). Built by private companies with the approval of public institutions - these city makeup products help to forge parallel realities disguised by the numbers they produce. Some exclusively residential areas reveal the manifold senses of "far". Brazil, and not only Rio, can be even farthest from "getting there" if taken into consideration the effort necessary to make the public engaged to produce demands (which may then imply action and effects, eventually resulting in some desired outcomes).

But all this doesn´t take place without being aware of the positive and negative load of the actual reality. Only a society which is active in this edifying process can define itself as democratic. A constitution ready to be used doesn´t replace the need to get involved in the process of building what it asserts. The procedures applied in these processes also need radical retrofits. And this cannot be done without considering peoples´ self-image, attitude and resources available. A distance is not only measured in miles or kilometers. It´s better expressed by the time and effort demanded by its reckoning and covering.  And the same for the other issues likewise. The questions are beyond human rights, but rather about the right to be human**. Therefore, the right to be unique, to go deeper and beyond predefined social standards of behaviour or desire. 

"For the supreme and rarest achievement is not to discover the unknown, to proclaim the incredible, but to explore day-to-day existence, the possibilities open to all, to the full richness of its potential fulfillment in the human spirit." (Lou Andreas-Salomé. The erotic [Die Erotik, 1911], 2012)

Public transport, social housing and traffic figures in Brazil are some of the many metaphors Urban Age Rio (#UARio) helped to outline as a contribution not only for the country´s thinking and "funking" (the Brazilian way of doing things), but also for raising issues on the sinking of its intellect and the faking embedded in its political relations and governance procedures.

Obs: Picture taken on 22nd October 2013 at favela Vila Nova Ouro Preto, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil.

*Newspaper of UA Rio available at 
http://rio2013.lsecities.net/newspaper


** To say this, I owe inspiration to Alain Badiou, Slavoj Zizek, David Harvey, José Miguel Wisnik, Freud, Paulo Freire, Nietzsche, Leon Battista Alberti, Agnes Heller, Hannah Arendt, Jacques Derrida, Felix Guattari, Pierre Caye and many other authors spread over history.

sábado, 22 de junho de 2013

Realidades em debate




Conforme combinado com os alunos, já que a tradução que fiz a seguir é uma adaptação dos últimos parágrafos do texto da Lou Salomé para o propósito do debate que fizemos em sala de aula dia 11/06/2013, seguem - ao final deste post - esses parágrafos na íntegra. Reitero que o objetivo do debate era discutir os projetos de arquitetura e urbanismo em prática atualmente em Belo Horizonte, cuja anatomia - como em qualquer assentamento humano - produz efeitos nos sujeitos que ali habitam. Os efeitos da capacidade mental dos sujeitos estendem-se à sua capacidade de organização em sociações, de habilitar-se para o exercício da política e para a produção da condição de república efetivamente democrática em uma sociedade. Quanto a esses quesitos, as propostas do vídeo postado acima, remetem a contrapontos que clamam pelo diálogo e pela crítica consciente dos cidadãos que por isso se interessem.

Lido ao final do debate, os parágrafos abaixo compõem-se de uma tradução livre do texto de Salomé que, escrito originalmente em alemão, recebeu uma tradução para o inglês publicada em 2012:

Considera-se que a realização mais suprema e rara consiste não em descobrir o desconhecido, proclamar o inacreditável, mas explorar a existência diária, as possibilidades abertas a todos para a máxima riqueza de seu potencial de realização enquanto ser humano.
Mesmo as coisas fisicamente distantes e aparentemente inacessíveis são nossas, são parte de nossa vida, constituem nossa paisagem e inspiram a coragem de viver e agir com amor, impelidos por novos sonhos que animam nossos passos. Essa coragem não pode ser fragmentada em especializações ou transcrita em uma linguagem que chega a ser vulgar ao expor as coisas como se fossem claramente visíveis. As coisas banais é que são claras e só se fazem decifrar por vagas sensações, incapazes de identificar de onde provêm e o que as causa.
O trabalho do sujeito sobre si mesmo, difícil e íntimo, também se realiza na experiência compartilhada: a tentativa de dedicar-se ao que de mais elevado o nosso olhar puder alcançar, de modo a transmutá-lo para a experiência cotidiana. Através desse intenso esforço, a experiência torna-se ato criativo, podendo ser implantada a uma profundidade tal que assegure sua presença tanto nos menores detalhes quanto na percepção do conjunto em que se exprime.
O fluxo dessa energia criativa já não se encontra suspenso no vazio, mas encarnado nos atos e pensamentos desde sua manifestação mais pessoal. A forma do sentimento que se tem não é tão importante quanto a presença da coisa em si. As formas, enquanto provas sensíveis do compartilhar das vivências, não podem gabar-se de um conteúdo que não é inerente a elas. Seu conteúdo é simbolizado em experiências concretas que resultam em lugares que não devemos buscar como solução em si, pois somos facilmente enganados por seu caráter nem um pouco fora do comum. Enganados, mergulhamos na busca interminável por aquilo que é mais brutalmente visível, mais comumente "real", como se entre os símbolos internos dos sonhos e íntimos encantamentos que nessas formas dormem, acreditássemos estar diante da presença do sublime, e o mais próximos possível da maior amplitude da vida.
A vida só existe enquanto milagre que constantemente renuncia sua própria condição de milagre, "feito quem desce da rede para ir ao jardim" *.

* Tomei a liberdade de acrescentar a essa tradução a citação de um trecho da letra de Kristoff Silva, na música intitulada "A voz e o verso", presente do CD "Deriva", de 2013. Esta frase de Kristoff e as palavras de Lou Salomé constroem uma ponte que passa por algumas reflexões de Freud. No final do livro intitulado "Cândido", o escritor e filósofo francês Voltaire afirma que devemos cultivar nosso jardim, e essas palavras inspiram Freud a relacionar esse cultivo a distrações e diversões, entre as quais inclui-se a atividade intelectual. Atividades desse gênero, que instiguem o intelecto a agir, são imprescindíveis ao fortalecimento dos sujeitos pois, segundo Freud,  afastam três grandes males: o tédio, o vício e a miséria.  (FREUD, 2011, p.18)

Ítalo Calvino também discorre sobre essa frase de Voltaire, não sem estabelecer uma ponte de ligação transtemporal com a contemporaneidade: 
Fonte: CALVINO, 1993, p.112.

Entre as questões que essa ponte enuncia, inclui-se aquela que indaga sobre os efeitos de se copiarem formas de arquiteturas e cidades de outros tempos e lugares, ao invés de se trabalhar - "com empenho prático-responsável-concreto" - sobre a interpretação do passado e mesclá-lo ao presente em múltiplas e não-lineares tentativas de condicionar novas possibilidades de futuro. Dito isso, torna-se inevitável desejar que em cada arquiteto, urbanista, e principalmente em cada fruidor dos espaços urbanos crie-se aquele capaz de, como diz Kristoff, "notar no de sempre uma súbita luz passageira e, no que há de mais novo, rever toda a antiguidade". A partir de uma tal postura interpretativa diante das coisas e dos fatos, ficamos expostos à possibilidade de sermos invadidos, tomados, por "uma beira de espanto no olhar." É aí que nos tornamos sujeitos da história, é aí que começamos a nos capacitar para a transformação de nossas realidades. O momento desse nascimento também não escapa a Fernando Pessoa, que diz:

Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo [...]
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
(PESSOA, 2001, p.26)

Em meio ao espanto, aos silêncios e às narrativas tecidas pelos passos nessa superfície de contato com a realidade (o solo: "a pele que habito"), encontram-se atos e reflexões que possibilitam ao cidadão construir aquilo que o futuro lhe concederá. Afinal, como diz Guimarães Rosa (2005, p.113.): "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo."
           

Últimos parágrafos de The erotic (2012), de Lou Saloméescrito ao longo da primeira década do século XX e publicado, em alemão, em 1911:

"For the supreme and rarest achievement is not to discover the unknown, to proclaim the incredible, but to explore day-to-day existence, the possibilities open to all, to the full richness of its potential fulfillment in the human spirit. Just as we believe, on a foggy morning, that we are walking on level ground until the sun dissipates the fog and we see the light fall on the mountaintops, which are often so isolated from the earth by clouds that they seem phantasmagorical - always higher, always more remote, and despite all this most inaccessible are still ours, still also part of our life: are our landscape.
However, the courage to love and to live, inspired by the sight of summits such as these, that compels us to new dreams and animates our steps, cannot be broken down into further specialization or transcribed into language, notwithstanding a certain vulgarization and an illumination which gives them the clarity of daylight - and also the clarity of the banal - we can only decipher them in vague generalities, so remote from any separation and division into precise fragments, as if, for example, we imagined ourselves in a flight of angels, able only to distinguish bright wings and faces, with no knowledge of their names. If this work on the self, the most secret and the most demanding there is, also becomes in reality a shared experience between two beings, then it is already like a two-person religion: the attempt to enter into a personal and shared relationship with the highest thing our gaze can reach, in order to transmute it into everyday experience. By this very effort, experience becomes a creative act, and is no longer accessible except in this capacity: implanted, in consequence, in a secret life much deeper, much more safely shielded from profane eyes, than even the best hidden secrets of love. For while love is obliged either to dissimulate consciously, i.e., to hide behind an alien principle, or to expres itself aloud, that is to say pathetically, as demanded by the overflow of its exuberant feelings, here, so to speak, feeling is no longer suspended in the void, but instead is incarnate in the most personal acts and thoughts, no longer seeking, in the form of feeling, but in its turn receiving all things into itself - and entirely present in all things, even the smallest [...].


Just as certainly as forms, envelops, senseless proofs of community of life cannot, without risk of being unmasked, boast a content that should never have entered into them, equally certainly this content is constantly symbolized in concretely experienced results in places where we would never look for them, deceived as we are by their everyday character. And thus deceived, we doubtless wander thousands of times, in that which is most coarsely visible, most ordinarily "real", as among the external symbols of the dreams which sleep in them, of intimate enchantments, without guessing that we are in the presence of the sublime, and closer than ever to the perfect fullness of life. For all life exists only as miracle that constantly renounces its miraculousness." 


Referências

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

PESSOA, Fernando. Poesia: Alberto Caieiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ROSA, João Guimarães. "O Espelho" In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SALOMÉ, Lou Andreas. The erotic [Die Erotik, 1911]. New Jersey: Transaction Publishers, 2012.

O "Cândido", de Voltaire, está disponível para download no dominiopublico.gov.br
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2239

Vídeo "Cidade da Cultura", disponível em  http://www.youtube.com/watch?v=OZt3JLbCA7Q, acesso em 22/06/2013.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O Espaço Público da Rua

                        Carmina Burana - Fortuna Imperatrix Mundi 

                                         Carl Orff, 1936


Instituídos em sociações onde as relações criem espaço para o diálogo e o questionamento, os sujeitos ativos do desenrolamento não aceitam os conflitos socio-econômicos como inevitáveis, mas os politizam, abrindo-os à discussão (ABRAHÃO, 2008). Identificados como sintomas, os conflitos tornam-se alvo da verdadeira subversão: o levantamento de questões como ponto de partida para a elaboração de exigências locais e especificas; as únicas capazes de promover transformações na realidade (ŽIŽEK, 2011). O sujeito histórico da transformação social é um "arquipélago de subjetividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas." (SANTOS, 2010, p.107). No processo de perceber suas necessidades individuais, relacionar-se com a alteridade (seres, objetos e instituições) e haver-se com os meios de atender suas demandas, o sujeito sempre poderá errar, mas "errará cada vez melhor" (ŽIŽEK, 2011). O produto improvisado de seu esforço conjunto pode ser superado, a cada tempo, por uma nova tentativa, por uma nova solução da qual cada singularidade não se esquivou de participar. Se as cidades refletirem demandas coletivas, pode-se esperar que exibam uma variedade tão rica quanto a dos próprios seres humanos(RYBCZYNSKI, 2010). O conflito, a divisão, a instabilidade não prejudicam a esfera pública; são condições necessárias à sua existência. Manifestações são parte dos instrumentos anti-hegemônicos que questionam a ordem estabelecida (SANTOS, 1988). A ameaça efetiva consiste no esforço de se anularem esses acontecimentos (ABRAHÃO, 2008). "O perigo é a política vir a desaparecer inteiramente do mundo." (ARENDT, 2010, p.148).

A esfera pública não é apenas o lugar do diálogo e do encontro, mas é também o lugar construído por esses elementos e onde residem as ambiguidades; o encontro das diferenças. E mesmo que tenha sido construído para o encontro só a construção pelo encontro, ao longo do tempo, legitima e confere sentido a esse lugar (ALBERTI, 2004). "Sentido" é aqui abordado como instrumento de crítica, não um reservatório, princípio, origem ou finalidade, mas um efeito criador que ultrapassa as percepções e orienta criticamente a articulação entre pensamento e ação (DELEUZE, 2006). O desmantelamento dos monopólios possibilita sua substituição por infinitas comunidades interpretativas que não renunciam ao trabalho sobre a interpretação de suas realidades; que não aceitam ficar entregues à própria sorte. Seu agir conjunto de palavra, ritmo e gesto é como o dos coros que, nos Carmina Burana, atuam como se fossem solistas. Essa polifonia é contra as verdades fortes; tantas vezes vazias, imprudentes e autoritárias. (SANTOS, 2010). A potência das diferentes vozes em uníssono define o impacto que seu canto provoca. Seu poder reside na relação que estabelecem entre si e que é reforçado pela postura e movimento que assumem em conjunto no espaço concreto onde se inserem: o espaço público da rua.

A rua, como espaço que possibilita interação com a alteridade, é lugar para o encontro das diferenças, onde acontece o processo de aprimoramento da condição humana. Relacionada a significados e funções públicas, a rua é aberta à presença dos cidadãos independentemente de dia e hora, em espaços geralmente localizados entre as pistas de rolamento e as divisas dos terrenos. Esses lugares, via de regra, recebem o nome de passeio, passeio público, calçada. Como passeio, fazem analogia à errância, ao movimento que torna a presença dinâmica e possibilita o deslocamento para outra posição, para outro ponto de partida. Como calçada, remete a estar (re)vestido apropriadamente para a freqüência social. Podem ocorrer ainda como largos que, do francês enceinte, trazem a conotação do espaço interior onde algo é gerido, criado; nesse caso o âmbito coletivo, a coisa pública; a res publica (CHOAY, 2011). O espaço público da rua é lugar frutífero para a criação e ampliação da condição de república em uma sociedade. Vestindo a rua com seu corpo e com sua presença ativa, o cidadão acorda para combater a nudez que o priva de toda dignidade.



REFERÊNCIAS
ABRAHÃO, Sérgio Luís. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Annablume, 2008.
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
ALBERTI, Leon Battista. L’art d’édifier. Paris: Seuil, 2004.
CHOAY, Françoise. La terre qui meurt. Paris: Fayard, 2011.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.
RYBCZYNSKI, Witold. Makeshift metropolis: ideas about cities. New York: Scribner, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A cidade como um jogo de cartas. São Paulo: Projeto Editores, 1988.
ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Arquiconfraria no Streetbook


Arquiconfraria é Streetbook: encontros que "chegam antes e além" da fachada, acontecem ao vivo e a cores, quando a gente fala, ri, chora (eu, pelo menos, sempre), abraça, despede, volta, despede de novo mas não vai embora, curte de verdade, "de mermo" como se diz na terra onde nasci pela primeira vez (mas isso já tem tanto tempo que nem sei se já virou gíria de museu... kkk) 

Hoje a Arquiconfraria aconteceu em um espaço aberto e coberto, em frente a um elevador, num Lugar - assim mesmo, com letra maiúscula, porque foi a gente que "fez"  - favorecido por um aconchegante recanto de peitoril de janela e fartos pilares; onde nos sentamos entre pedras e tijolos à vista para expor nossas almas sem reboco. Conversas de corredor que rompem com a correria, corrompem a solidesilusão e irrompem em entusiasmo para o que há de vir!!!


Melhor que isso, só na beira da lareira da casa da Juliana (foto acima), em Bloomsbury, com o Augusto na bateria e o Kristoff (citação acima) no vocal.... Tudo isso ainda é maquete e, de algum modo muito estimulante, sempre será...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Materialidade x Materialismo



Trabalha-se segundo o princípio de que uma das maneiras de se transformar os modos de pensar e agir de uma sociedade parte da transformação de suas formas de vida e de sua  articulação com a materialidade dos espaços que habita. Entende-se que é possível romper os limites da ação e do pensamento através da transformação das configurações físicas desses espaços, que são o próprio instrumento dessa transformação. Os espaços que se articulam ao habitar podem relacionar-se ao lazer cotidiano, necessário ao enfrentamento da realidade. Esses momentos de inserção na esfera pública possibilitam às pessoas atentarem para as questões que lhe são caras, seja como indivíduos, sociações* ou instituições. Segundo a leitura que Terry Eagleton (2012**) faz de Marx, não há motivo para nos deleitarmos na companhia uns dos outros, mas quando o fazemos, estamos concretizando uma demanda essencial para qualquer transformação. Esse contato com a alteridade possibilita que se construam modos de lidar com a natureza complexa e impermanente da realidade. As dificuldades enfrentadas e parcialmente registradas pela história devem-se às pressões materiais, mais que aos limites da condição humana. Um ataque às restrições impostas por essa materialidade pode ser um caminho frutífero que começa pela ampliação da consciência a respeito delas. Assim é possível pensar que alguém, um dia, ao estudar história, quase duvide de que já possa ter sido comum dispender mais de 20% da vida diária em deslocamentos cotidianos e em condições precárias de isolamento e/ou desconforto; assim como também de que se possam já ter dividido uma parede com alguém durante anos a fio sem nunca ter-lhe dirigido a palavra, caçado filhotes de foca e estripado pessoas em público por suspeita de heresia.

As duas imagens acima mostram a estonteante presença do edifício do Colégio Arnaldo na paisagem urbana de Belo Horizonte e, a partir de uma outra perspectiva - a quatro quadras dali - a quase invisibilidade de suas torres  sufocadas pelo ambiente construído que as rodeia.

Vergesellschaftung, um termo do sociólogo alemão, Georg Simmel.
** EAGLETON, Terry. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A tarefa concreta do arquiteto




A tarefa do arquiteto não é meramente elevar estruturas em concreto armado, mas "armar para cima do concreto". Esse jogo de palavras -  uma armação, de fato - quer dizer que, através de modos criativos e inovadores de dispor os espaços sem desconsiderar a importância de sua materialidade, de sua expressão material, os arquitetos encarregam-se de propor respostas que dialoguem com uma abordagem técnica e teórica própria a seu campo de trabalho. A arquitetura tem uma razão própria, uma razão que estrutura sua ação em prol da transformação de realidades tangíveis e intangíveis em que nos cabe viver. A sustentabilidade que a sustenta, que a estrutura, por assim dizer, sustenta concomitantemente - e preferencialmente - a vida das espécies, e não apenas do dinheiro em espécie; uma entre as tantas que merecem consideração. É segundo essa razão própria à arquitetura que o arquiteto molda suas idéias, molda a forma de suas idéias;  formas que condicionam a anatomia de suas cidades e alimentam a capacidade de seus cidadãos de transformarem-se a si mesmos e à realidade que os articula nos espaços e tempos organicamente vividos. Não é à toa que o concreto é passível de ser moldado em formas orgânicas, que aludem ao seu potencial de aceitar diversas "armações" e inúmeras abordagens. Assim como para o homem, os limites do concreto delineiam-se segundo os limites de sua criatividade. 

Essas reflexões não teriam sido elaboradas sem a prolífica e inspiradora produção teórica do prof. Carlos Antônio Leite Brandão - principalmente acerca da identificação de uma razão-própria à arquitetura - e das edificantes análises críticas que a Prof. Celina Borges Lemos, em sua linguagem técnico-poética tão singular, oferece-nos instrução e motivação para concretizar.

O vídeo elucida o caráter do edifício Main Point Karlim - inaugurado em 2011, em Praga - cujas lajes protendidas e revestimento externo em fibrocimento colorido são apenas parte do que a sustentável criatividade dos arquitetos pode produzir.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Sobre aquilo que conversamos ontem, TT


Sobre aquilo que conversamos ontem, TT, o imaginário em torno do amor constrói-se também em função da música que ouvimos. A forma com que ela registra esse conceito que assimilou expressa-se tanto na letra quanto na melodia. Nunca se pode reduzir a forma a uma mera forma[i]. Uma letra[ii], cuja lição é das mais esplêndidas para nós, que acreditamos de fato no amor, recebeu no final da década de setenta uma melodia melancólica, que já merece ser reeditada sob a inspiração mais contemporânea da alegria e do estímulo à produção de sentido que sua letra revela. Digo produção de sentido não enquanto um sentido pronto e passível de ser "vendido", que como tal poderia ser "vestido" e marcar um "estilo". Mas um sentido mais genuíno,  incessantemente produzido; um sentido que não nega sua relação com o inconsciente, que não nega a ação do pensamento, das percepções, das sensações, dos sentimentos, das conjunturas da realidade tal como se apresenta para nós e das motivações que nos afetam[iii]. Conjugo o verbo afetar como despertar afeto, mesmo. No sentido de despertar em nós a força de Eros, que por algum motivo o mundo contemporâneo optou por chamar de erótico e muita gente desconhece a origem do termo[iv]. O poder de Eros é a força que nos mantém juntos, enquanto elementos que não fazem sentido sem a articulação que nos coloca em reunião[v]. É possível que o motivo para nos deleitarmos na companhia uns dos outros hoje em dia esteja além de uma explicação meramente racional. Mas o fato é que quando nos reunimos, estamos concretizando uma demanda essencial para qualquer transformação do mundo e de nós mesmos. Esse contato com a alteridade possibilita que se construam modos de lidar com a natureza complexa e impermanente das realidades individuais e coletivas. É uma pena que o imaginário romântico brasileiro - quero dizer a forma como ele assimila esse produto que a burguesia criou e passou a vender assim que se inventou como categoria social (usando e vendendo essa imagem idealizada como compensação para suas frustrações - em parte causadas pela falta de títulos de nobreza e todas as suas implicações sociais; essa visão burguesa desconsolada de quem compra gato por lebre) não encontre melhor retrato que na genial expressão de Alcione[vi]. De um ´meu menino´ - que não é ´meu´ mas, sim, de si próprio - passa-se para um menino sem juízo, que sequer consegue cuidar de si, imagine de seus relacionamentos[vii]. De seu envolvimento com tudo, aliás, que vai além do que ela tão sabiamente captou e expressou em sua composição. A música que acompanha essa teorização tão relevante da nossa precária condição amorosa - de um país em efetivo des-envolvimento[viii] em tantos campos - conserva um it melancólico, mas não a vejo como tão carente de uma reedição. Ela tem que ser mesmo meio triste. Afinal, além de uma alma de samba, seu conteúdo é não menos que lamentável enquanto postura diante da vida e das pulsões que nos perfuram o tão almejado equilíbrio flutuante. Masserizia nas palavras de Alberti. Um homem que não pode mesmo existir mais, de tão contemporâneo. Mas ainda há esperanças. Se não fosse assim, não teríamos um hino[ix] que, a meu ver, coloca as coisas nos seus devidos termos e aponta para um caminho que merece ser construído. Aí, sim, conseguimos articular o produto amor às nossas necessidades mais íntimas. Sob a égide do Barão - que lhe permite resgatar a tão merecida nobreza - e das coisas mais corriqueiras do dia-a-dia, tudo-ao-mesmo-tempo-agora, o amor pode almejar construir a dignidade de que jamais deveria ter se abstido. Não, Barão, a vida não é ´puro êxtase´. Melhor que não seja, mesmo. Mas ela é ´por você´, afinal, ´meus amigos´, ´por que a gente é assim?´[x] Isso explica, talvez, o nome desse blog.[xi]




[i] Elaborado a partir do que diz Žižek, em "Em defesa das causas perdidas", Editado pela Boitempo, em 2011, e não sem a compreensão do pensamento de Leon Battista Alberti, principalmente no De Re Aedificatoria [1452], editado no Brasil apenas em 2012, pela Hedra sob o título "A arte de construir" (cujo Prefácio e Introdução são magníficos) e pelo indescritível Momus, ainda sem edição no Brasil. Para os que se arriscam no francês, recomendo o L´Art d´Édifier, cuja Introdução e Posfácio constituem a pedra fundamental de qualquer articulação de conhecimento transtemporal que se almeje construir.  Pode-se adquiri-lo em http://livre.fnac.com/a1560502/Leon-Battista-Alberti-De-l-art-d-edifier. Já o Momus, pode ser lido on-line em italiano no link http://www.ousia.it/SitoOusia/SitoOusia/TestiDiFilosofia/TestiPDF/Alberti/Momo.pdf. Para os que preferem o inglês, fica a excelente versão bilígue disponível em http://www.amazon.com/Momus-I-Tatti-Renaissance-Library/dp/0674007549/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1359801397&sr=1-1&keywords=momus+alberti. Essa edição é mais uma das coisas que agregam tão bem forma e conteúdo. Inspirados pela leitura contemporânea de Alberti, somos instigados a dizer, como ele, que na medida em que constroem seu ambiente, o sujeitos edificam-se a si mesmos. E isso vale tanto para o âmbito individual quanto coletivo.
[ii] Refiro-me a "Meu Menino", composição de Ana Terra e Danilo Caymmi, de 1977 ou 1978, acredito. http://letras.mus.br/milton-nascimento/47433/
[iii] Essa elaboração é muito influenciada pela leitura de um texto específico de Deleuze, intitulado "Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento", de 1968, editado no Brasil pela Iluminuras, na magnífica coletânea de textos do autor. A publicação tem o nome de "A Ilha Deserta", e foi preparada por David Lapoujade.
[iv] Como bom respeitador do casamento entre forma e conteúdo, Freud deixa isso bem claro quando explica porque não abre mão de usar o termo "energia libidinal" quando se refere ao combustível da força constante que nos move e para qual a língua alemã tem o termo mais adequado para referir-se: Trieb, "palavra pela qual tantas outras línguas nos invejam", dizia Freud. A respeito do termo libidinal, ele se preocupava com o fato de abrirmos mão repetida e progressivamente das coisas até termos aberto mão de tudo. Por isso ele recorria à forma da palavra para nunca nos deixar esquecer de seu conteúdo mais elementar e precioso (isso está em algum dos volumes da obra completa dele que a Companhia das Letras editou até agora em uma coleção única. Posso localizar se você quiser). As virtudes da libidine não podem contudo ser analisadas à revelia dos perigos a que esta nos expõe em seu estado puro. Se cedermos a ela somos sugados e voltamos à condição humana anterior ao Renascimento, quando ainda não tínhamos nos dados conta de que o nosso destino pode ser condicionado pelo acaso (sorte, azar, conjunturas), mas não é determinável por ele, nem tampouco inexorável. Essa condição medieval da estrutura psíquica do sujeito, ainda longe de ser extinta -  foi muito bem retratada pelos versos de Carmina Burana (http://www.das.ufsc.br/~sumar/perfumaria/Carmina_Burana/carmina_burana.htm) , cujo conteúdo parece ceifar qualquer hipótese de originalidade na percepção que Alcione imprime na letra citada (ver nota vi, abaixo). Essa falta de originalidade não se deve a eventuais restrições da compositora, mas da próprio natureza humana, tão tendenciosa à repetição. A Alcione só tenho a agradecer, especialmente pelo seu especial talento de nos ensinar pela didática dos contrários. Ela nos alerta a respeito do que não fazer, exemplo,  "Meu mundo é seu". Que meu mundo é seu, que nada, meu mundo é meu e entra nele quem eu quero.
[v] Quem quiser ler mais sobre as reflexões que inspiraram a elaboração desse pensamento, vai encontrar em Alberti, Marx, Freud e em seus "seguidores" contemporâneos uma inesgotável inspiração. Entre estes posso citar Françoise Choay, Pierre Caye, Terry Eagleton, Alberto Perez-Gomez, Slavoj Žižek, Alain Badiou, Edgard Morin. É engraçado como agora com o Twitter, o Facebook e os Blogs o termo "seguidor" ganhou a dignidade pela qual lutou por tantos séculos. Ser um seguidor não significa mais ser um fundamentalista, mas apenas querer saber o que o outro tem a dizer, mesmo que discorde. Como bem nos ensina Žižek ("A visão em Paralaxe", Boitempo, 2009), ser um fundamentalista é efetivamente não acreditar, pois para acreditar precisamos da distância crítica que sempre se deve instaurar entre nós e as coisas. A mestria de Fernando Pessoa remete muito a isso. Ele criava a distância entre ele e ele mesmo e dava a cada uma delas um caráter diverso na persona de seus heterônomos. Sua genialidade ultrapassa quaisquer parâmetros estabelecidos isoladamente por uma disciplina, a cujo isolamento a modernidade tanto se dedicou e que agora se consomem em todos os sentidos. Não é à toa que tanto se tenta reimplantar a transdisciplinaridade tão corriqueira a Cícero e sobre cujo abandono Alberti tenta nos alertar desde o Renascimento.
[vi] Refiro-me especificamente a "Menino Sem Juízo", cuja letra acessei, em 02/02/2013, através do link http://letras.mus.br/alcione/128248/
[vii] Relacionamentos com tudo, não apenas os interpessoais. Felix Guattari os resumia como as três ecologias: "do meio ambiente, das relações sociais, da subjetividade humana" (em livro homônimo, editado pela Papirus). Tendo-se descuidado de todas elas, o homem desvinculou o crescimento econômico da consideração pelas ecologias, cujos únicos traços comuns parecem ter-se reduzido às três primeiras letras de seus nomes e à irracionalidade com que seus protagonistas praticam sua chamada "racionalidade" em ambos. Não é à toa que Hegel já dizia que a insanidade não é desprovida de razão. Hitler esteve por aí para comprovar essa tese de uma vez por todas.
[viii] Disseco esse termo tão batido e explicito essa sua expressão hifenizada no capítulo 1,  intitulado "Desenrolamento", em http://hdl.handle.net/1843/BUOS-8YQN5B
[ix] Refiro-me a "Amor, meu grande amor", composição de Ana Terra e Angela Ro Ro, sobre a qual Cazuza insistiu em trabalhar até inventar uma nova versão musical, gravada junto com o BarãoVermelho.
[x] Músicas do grupo Barão Vermelho , todas acessíveis, em 02/02/2013, pelo link http://letras.mus.br/barao-vermelho/44415/
[xi] Em homenagem à minha amiga de Itabira, inspiro-me em seu conterrâneo que disse: "E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda? Isso explica, talvez, as coisas desse mundo." (Carlos Drummond de Andrade). Ah, e antes que eu me esqueça, a foto é daquela festa que fizemos aqui em casa, no dia de finados do ano passado, em homenagem aos cantores falecidos. Claro que não vou contar para ninguém qual deles é você, mas da esquerda para a direita vemos as versões de Elvis, Janis Joplin, Lacraia, Donna Summer, Hebe e Joey Ramone.