segunda-feira, 17 de junho de 2013

O Espaço Público da Rua

                        Carmina Burana - Fortuna Imperatrix Mundi 

                                         Carl Orff, 1936


Instituídos em sociações onde as relações criem espaço para o diálogo e o questionamento, os sujeitos ativos do desenrolamento não aceitam os conflitos socio-econômicos como inevitáveis, mas os politizam, abrindo-os à discussão (ABRAHÃO, 2008). Identificados como sintomas, os conflitos tornam-se alvo da verdadeira subversão: o levantamento de questões como ponto de partida para a elaboração de exigências locais e especificas; as únicas capazes de promover transformações na realidade (ŽIŽEK, 2011). O sujeito histórico da transformação social é um "arquipélago de subjetividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas." (SANTOS, 2010, p.107). No processo de perceber suas necessidades individuais, relacionar-se com a alteridade (seres, objetos e instituições) e haver-se com os meios de atender suas demandas, o sujeito sempre poderá errar, mas "errará cada vez melhor" (ŽIŽEK, 2011). O produto improvisado de seu esforço conjunto pode ser superado, a cada tempo, por uma nova tentativa, por uma nova solução da qual cada singularidade não se esquivou de participar. Se as cidades refletirem demandas coletivas, pode-se esperar que exibam uma variedade tão rica quanto a dos próprios seres humanos(RYBCZYNSKI, 2010). O conflito, a divisão, a instabilidade não prejudicam a esfera pública; são condições necessárias à sua existência. Manifestações são parte dos instrumentos anti-hegemônicos que questionam a ordem estabelecida (SANTOS, 1988). A ameaça efetiva consiste no esforço de se anularem esses acontecimentos (ABRAHÃO, 2008). "O perigo é a política vir a desaparecer inteiramente do mundo." (ARENDT, 2010, p.148).

A esfera pública não é apenas o lugar do diálogo e do encontro, mas é também o lugar construído por esses elementos e onde residem as ambiguidades; o encontro das diferenças. E mesmo que tenha sido construído para o encontro só a construção pelo encontro, ao longo do tempo, legitima e confere sentido a esse lugar (ALBERTI, 2004). "Sentido" é aqui abordado como instrumento de crítica, não um reservatório, princípio, origem ou finalidade, mas um efeito criador que ultrapassa as percepções e orienta criticamente a articulação entre pensamento e ação (DELEUZE, 2006). O desmantelamento dos monopólios possibilita sua substituição por infinitas comunidades interpretativas que não renunciam ao trabalho sobre a interpretação de suas realidades; que não aceitam ficar entregues à própria sorte. Seu agir conjunto de palavra, ritmo e gesto é como o dos coros que, nos Carmina Burana, atuam como se fossem solistas. Essa polifonia é contra as verdades fortes; tantas vezes vazias, imprudentes e autoritárias. (SANTOS, 2010). A potência das diferentes vozes em uníssono define o impacto que seu canto provoca. Seu poder reside na relação que estabelecem entre si e que é reforçado pela postura e movimento que assumem em conjunto no espaço concreto onde se inserem: o espaço público da rua.

A rua, como espaço que possibilita interação com a alteridade, é lugar para o encontro das diferenças, onde acontece o processo de aprimoramento da condição humana. Relacionada a significados e funções públicas, a rua é aberta à presença dos cidadãos independentemente de dia e hora, em espaços geralmente localizados entre as pistas de rolamento e as divisas dos terrenos. Esses lugares, via de regra, recebem o nome de passeio, passeio público, calçada. Como passeio, fazem analogia à errância, ao movimento que torna a presença dinâmica e possibilita o deslocamento para outra posição, para outro ponto de partida. Como calçada, remete a estar (re)vestido apropriadamente para a freqüência social. Podem ocorrer ainda como largos que, do francês enceinte, trazem a conotação do espaço interior onde algo é gerido, criado; nesse caso o âmbito coletivo, a coisa pública; a res publica (CHOAY, 2011). O espaço público da rua é lugar frutífero para a criação e ampliação da condição de república em uma sociedade. Vestindo a rua com seu corpo e com sua presença ativa, o cidadão acorda para combater a nudez que o priva de toda dignidade.



REFERÊNCIAS
ABRAHÃO, Sérgio Luís. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Annablume, 2008.
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
ALBERTI, Leon Battista. L’art d’édifier. Paris: Seuil, 2004.
CHOAY, Françoise. La terre qui meurt. Paris: Fayard, 2011.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.
RYBCZYNSKI, Witold. Makeshift metropolis: ideas about cities. New York: Scribner, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A cidade como um jogo de cartas. São Paulo: Projeto Editores, 1988.
ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.


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