sábado, 30 de novembro de 2013

A importância das próteses

Rua Antônio de Albuquerque, entre Sergipe e Levindo Lopes. Foto da autora, 2013.


Difícil saber quando começam as próteses, pois remontam à época da pedra lascada, ou antes. Parecemos sempre ter precisado de algo que fosse além de nossas possibilidades físicas, que ampliasse ou recuperasse o potencial de nosso corpo e da nossa mente tal como nos foram dados pela natureza.  Passado todo esse tempo, nossa coleção acumula próteses individuais e coletivas, e para vários propósitos. Economizamos as pernas andando de ônibus, usamos lentes intraoculares que nos devolvem a visão, gravamos em máquinas o que vemos, para não esquecer; recuperamos a retina, a pele - e seu viço - com laser; que usamos inclusive para levantar e documentar tridimensionalmente os volumes naturais e edificados que compõem a pele de uma aglomeração urbana para melhor a vermos e nos havermos com ela. 

Tornamo-nos hábeis em produzir próteses que ultrapassam suas próteses originárias, fazemos próteses para as próteses - o laser que vai além da luz, os edifícios, que empilham moradias em máquinas-de-morar. A cultura também é uma prótese. Ela acolhe e limita nossas pulsões, dita o que não devemos fazer e até onde ir quando decidimos fazer algo. A cultura é uma prótese que vem em várias escalas, todas conviventes de algum modo. A cultura de uma nação, a cultura de uma região, de uma cidade, de uma empresa, de um grupo. Também vendida em porções individuais - pois a cultura é acima de tudo um  produto - observa-se que ela ocupa também um espaço que antes pertencia à moral. A moral é, por definição, de cada indivíduo, mas sua elaboração demanda trabalho. Um trabalho que se debruça sobre a consideração das coisas, inclusive da cultura. A moral permite ao sujeito enxergar-se  a si mesmo e ao contexto em que está inserido – munido para isso de um olhar crítico e questionador. Um olhar que pergunta, um olhar que pensa. É natural que a cultura  queira  anular essa capacidade das pessoas. É para isso também que ela foi criada. 

A cultura da obediência cega, a cultura do hábito acrítico, a cultura do desânimo; palavra que etimologicamente significa a negação de um potencial passível de existir em cada um de nós (algo que nos transcende e que recebeu por muito tempo o nome de "alma", ou "ânima", que também significa "vida"). Um indivíduo desanimado parece-me alguém  que ainda não é sujeito de sua própria história - ou que já foi jogado para fora dela pelo sistema que alimenta a cultura com que se depara no cotidiano. Segundo Lacan (Meu ensino, p. 77)  a cultura  “dispensa completamente a função de pensar”. Afinal, diz ele, em  que  se pensa? Pensa-se nas coisas que não se sabe, fazendo um esforço enorme para conseguir compreender. "É isso que se pode chamar de pensamento. Ao cogitar, eu agito, eu vasculho. Isso só começa a ficar interessante quando é responsável, isto é, traz uma solução o máximo possível formalizada." Se o pensar não puder produzir algo formal, ou seja transformador da forma estabelecida de se  fazerem as coisas, "por que nos deteríamos sobre ele?" Aqueles que são inclinados a pensar são imbatíveis, e a cultura está consciente disso. 

A cultura do status quo sabe que os que pensam já criaram os canais para destinar sua energia de vida, e que esta por ali flui, como um rio que corre convicto de seu curso. É aí que  a cultura cria, revira, distorce. Aproveita sua capacidade tão virtuosa  de criar limites – sem os quais nossos antepassados talvez tivessem se assassinado mutuamente até a extinção – e cria limites também para o pensamento. Mas não explicitamente, é claro. Para esse efeito ela faz uso de quê? Das mesmas próteses. A pós-modernidade parece ter vindo para tornar evidente que essas próteses têm pelo menos dois lados. A face com que inicialmente se apresentam parece suave e confiável, mas seu outro lado frequentemente é subversivo; seja da ordem estabelecida ou do aprimoramento da condição humana. Seu efeito depende de como se quer usá-las.

A subversão da nossa capacidade de nos aprimorarmos como seres pensantes - que dialogam por meio de palavras mesmo através do tempo [1] - é a forma mais cruel de tortura individual e coletiva que acredito poder existir [2].  Os “indivíduos-para-si” (ver o quadro abaixo) sofrem porque passam a vida submetidos ao desconhecimento de sua  capacidade de ir além de si mesmos. Assim torna-se difícil inventar modos de sair desse lugar em que foram jogados pelo sistema. Os sujeitos – indivíduos-para-si que já perceberam que o sentido da vida vai além da mera existência individual - sofrem porque conhecem o potencial da articulação com a alteridade [3], mas têm as mãos atadas, uma vez que seu pensar, seu agir, são cada vez mais bloqueados antes de tornarem–se palpáveis na realidade concreta que nos cabe transformar para melhor viver.  



A prótese burocrática  alia-se à prótese política, e à prótese cultural, e à prótese jurídica, formando um exército apocalíptico que mata os seres pensantes e agentes, "quase sem querer"[4]. "Tão correto, tão bonito" esse modo de fingir é, mesmo, como diz Renato Russo,"um dos deuses mais lindos". "Sei que às vezes uso palavras repetidas”, mas esse modo de fingir-se vivo [5] envenena os jovens desde a mais tenra infância de seu intelecto. O aborto é crime no Brasil, mas não esse, infelizmente. Só que essas estão entre “as palavras que nunca são ditas". O intelecto é algo que precisa ser nutrido e cultivado pra valer. Ele sim, é a nossa primeira prótese. Mas uma prótese que temos que trabalhar muito para produzir e aprimorar. 

Não há atalhos. Não há próteses capazes de nos tornar mais criativos, mais inteligentes, imediatamente e sem esforço. A inteligência é que é a prótese, entende? E os sistemas, e a cultura procuram distrair-nos com as outras próteses; os joguinhos, os seriados, as novelas, as drogas, as retículas em que se delineiam os edifícios e as cidades onde nos cabe viver, quase sem caber. É mesmo mais fácil jogar com peças quadradas e seriadas que desconhecem a droga em que estão enoveladas. A única prótese que ipso facto favorece a construção do intelecto chama-se "coragem". “Coragem pra querer”, diz Wisnik [6]. Alguns até nascem com um bocado dela, mas aprimorá-la é preciso. Só que esse impreciso processo não é sequer para todos; é só para quem quer, mesmo que não lhe caiba.



[1] Para esse diálogo transtemporal servem os livros e as cidades; verdadeiros livros de pedra onde os humanos escrevem sua história, mesmo sem querer.

[2] Parece-me que as melhores referências da pedagogia também pensam assim: Noam Chomsky, Henry Giroux, Donaldo Macedo e o mestre maior, Paulo Freire. Tanto que se referem ao que aqui chamei de cruel tortura como "Poisonous Pedagogy" (FREIRE, GIROUX et al, 1999).

[3] A essência da alteridade é a consciência da diferença que existe entre o "eu" e o "outro" (HELLER, 1977). 

[4] Alusão à música de Renato Russo, que tem esse título. Letra disponível em http://letras.mus.br/renato-russo/243675/, acesso em 30/11/2013.

[5] O filósofo Slavoj Zizek tem chamado esses seres que se fingem vivos, de "Zumbis", sobre os quais muito temos a aprender com o cinema contemporâneo. Zizek fala disso em http://www.lacan.com/zizdazedandconfused.html, acesso em 30/11/2013. Incrível.

[6] Refiro-me a um verso da primeira música que José Miguel Wisnik cantou no show "A Olhos Nus", com Ná Ozzetti, em BH, dia 23/11/2013. Impressionante como é poderosa essa letra, de cujo título não me lembro agora. Entendi que ela fala das coisas simples do dia-a-dia, aquelas que quando temos não nos lembramos de agradecer - como a casa e a roupa estendida no varal - mas quando se ameaçam perdidas, sofremos e pedimos ajuda a Deus. A árvore da foto é exemplo disso. Oxalá que esse monumento natural de Belo Horizonte não seja mais uma jogada [abaixo pela]/[baixa da] cultura que desmembra e arranca uma a uma as folhas do nosso livro de tronco e pedra que, já centenário e por tantos amado, mereceria ser tratado por todos com mais respeito.

*O título foi dado pela Ana Luiza, querida colega de trabalho que muito admiro.

Referências

CAYE, Pierre. Postface. In: ALBERTI, Leon Battista. L’art d’édifier. Paris: Seuil, 2004, p. 529-550.
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. For what tomorrow: a dialogue. Stanford: Stanford University Press, 2004.
HELLER, Agnes. Sociologia de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Peninsula, 1977.

FREIRE, Paulo; GIROUX, Henry A.; FLECHA, Ramón; MACEDO, Donaldo; CASTELLS, Manuel. Critical Education in the New Information Age. Oxford, England: Rownman & Littlefield Publishers, 1999.

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