sábado, 27 de novembro de 2010

Arquitetura e Cinema


Tanto as marcas das mãos de Carol quanto o despregar do papel de parede fazem sentido diante da fala do vizinho de Barton: “é patético que isso aconteça a um cara como você, de Nova York”. Carol é francesa mas está morando em Londres, o que a coloca na mesma situação. Fink tenta recolocar o papel e, através do mesmo gesto dela, torna evidente a sua perturbação.

As mãos saindo das paredes e tentando agarrá-la passam a impressão de que repulsão e desejo andam sempre juntos, muito além do princípio do prazer. Seria a repulsão um desejo reprimido ?

A angústia é um afeto primordial para Freud. Sua primeira teoria a respeito afirma que o processo do recalque tem o efeito de transformar a libido em angústia (Cf. FREUD, Sigmund. “Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada ‘neurose de angústia”- 1895). Esta posição é modificada no trabalho de 1926, “Inibição, sintoma e angústia”, onde concebe a angústia de castração como promotora da operação de recalque. No Unheimliche, que está no meio do caminho – 1919 – o argumento utilizado é apenas que, com a operação do recalque, o afeto da moção pulsional surge transformado, e tem a tonalidade da angústia, visando explicar o motivo pelo qual fatos que não seriam em si estranhos, quando se associam ao retorno do recalcado, vêm acompanhados de afetos negativos: angústia, medo, horror. Isso não desmente a segunda teoria freudiana. Pelo contrário, até a antecipa: se a angústia de castração é que provoca o recalque, certamente o recalcado que retorna (e que justifica a estranheza das vivências) virá acompanhado de lembranças de perda, de ausência, de falta, enfim, de tudo o que é circunscrito como castração.
Obs.: apenas os grifos são nossos, a citação foi tirada integralmente de PORTUGAL (2008,p.79). 

A consumação do desejo de Barton pela mulher do escritor é mostrada pelo diretor através da tubulação e instalações hidráulicas do apartamento. Seguindo esse raciocínio, Carol estaria inundada de desejo, mas vulnerável a ele. A vulnerabilidade seria expressa pelos pés que tocam o chão, mesmo que apenas através da água que o molha ?

O corredor demonstraria, então, a ambiguidade do desejo pela solidão, já que a tuba conduz o expectador até ele pela transição original elaborada pelo diretor.

Uma das cenas mais longas de Repulsion mostra o corredor e depois Carol indo até o banheiro, onde irá eventualmente encontrar o namorado da irmã – seu objeto de desejo e repulsão ?

O corredor, entendido aqui como manifestação arquitetônica da solidão no filme, grita em certo momento: “Show yourself !” e então aparecem os “agressores”, invasores do espaço interior de cada um. “Ouvrez cette porte!” 

O corredor, ao som da máquina de escrever, faz-me lembrar do poema de um amigo, que datilografou:
“Escrevo seu nome mil e uma vezes
Para sentir saudades
E ter algo seu como lembrança.
É noite e, lá fora, somente a solidão.”

No elevador, Barton pergunta se o ascensorista já leu a Bíblia. Sua resposta é curiosíssima: “I think so. Anyway, I’ve heard about it.” Essa parece ser a posição da maioria em relação à sua estrutura psíquica, à qual só dão atenção quando começa a ruir.

As fendas que se abrem pelos caminhos de Carol denotam, fisicamente, seu estado psíquico. São recalques estruturais sérios. Já Barton tem recalques leves, manifestados por um papel de parede que insiste em se soltar.

Muitas vezes essa condição também é ignorada pelo “outro”, que não assume seu papel "lacaniano": a irmã que acha que Carol está bem (mas viaja para um lugar famoso por seu recalque estrutural !!!) e Barton, ao não perceber que o vizinho é um psicopata.

A ambigüidade aparece também em objetos cruciais. Uma navalha que tanto pode limpar e embelezar, quanto ferir mortalmente. Uma máquina de escrever cujo som ou silêncio pode significar a competência ou incompetência de alguém. Um quadro que, de sonho, torna-se realidade.

O design de alguns objetos também chama a atenção: a caixa de fichas que o recepcionista coloca sobre o balcão ao procurar a reserva de Fink (praticamente um notebook !) e a mesa triangular do agressivo agente, um dos poucos contatos de Barton em Los Angeles.

Outro objeto curioso, que nos leva a reflexões mais profundas, é a foto de Carol ainda criança, cercada de familiares e principalmente do suposto pai, na foto, à direita. Polanski dá bastante ênfase a ela ao longo do filme e essa dica reverte-se para nós em pulga atrás da orelha. Como disse o dono da mesa triangular “What the hell happened ?” Houvera esse olhar (e sua condicão psíquica) sido provocado por alguma atitude do pai, ou ela já tinha por ele uma mistura de ódio, medo e desejo que precedia até mesmo sua existência ?

O olhar do vizinho de Barton tem grande semelhança com o dela, mas não parecemos encontrar ódio ali. Talvez admiração na escuta encantada de um ator em segundo plano que aguarda o momento de sua fala. Teria o filme essa falha ? Enquanto isso, Barton descreve parte do trabalho do diretor, do escritor e, por que não?, do arquiteto: "I try to drag something from the inside; something honest.”

Nesses dois últimos parágrafos talvez estejam resumidas as idéias primordiais tanto da equipe de cinema quanto de arquitetura:
1) criar algo inspirado no próprio ser humano, suas peculiaridades e seu cotidiano;
2) algo que não termina quando acaba, mas que deixa reflexões para depois e sempre.

Clip elaborado a partir dos filmes Barton Fink, dos irmãos Cohen e Repulsion, de Roman Polanski. A proposta de trabalhar com esses filmes foi da disciplina Arquitetura e Cinema, da prof. Carmen, oferecida no mestrado em Arquitetura e Urbanismo do NPGAU-EA-UFMG. Para as questões relativas à teoria de Freud, foi consultado o livro da Ana Maria Portugal e, para as questões do filme, a bibliografia da disciplina. Para entender as teorias de Freud e Lacan aplicadas às nossas questões contemporâneas, recomendo a leitura do texto Tecnocracia do Viver, de Monica de Almeida Belisário.

PORTUGAL, Ana Maria. O vidro da palavra – o estranho, literatura e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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