segunda-feira, 5 de abril de 2010

Vestígios


Acorda e curte a delícia de edredon. Percebe o sol e levanta rápido. Abre a cortina e vê o dia lindo de abril como um presente. Biquini, filtro solar, mas ainda está frio lá fora. Separa o chapéu e sai do quarto em silêncio. Café fresquinho com leite. Pão fresquinho com manteiga derretendo. Hoje é sábado, então dá para comer um bolinho de sobremesa. Para a mãe dela, todas as refeições tinham que ter sobremesa; e esse é o motivo do restinho de café com leite que sempre fica para arrematar o doce. Doce como ela era. E doce fica o dia. Recolhe as roupas do varal e põe as toalhas na máquina. As louças já estão lá, sacudindo. O barulho das duas funcionando ao mesmo tempo é a música da libertação feminina. Chapéu e óculos a postos, faltam as luvas, a enxada e o saco plástico. Ainda não inventaram uma máquina que capine o jardim. Mas capinando se limpam todos os problemas da vida, como se fosse uma borracha que arranca junto a raiz. Ela poderia estar na Toscana, no sul da França ou em um belo jardim inglês. E se sente assim. A cada ramo que sai, um aprendizado. Alguns problemas, quando olhamos antes de lidar com eles, parecem difíceis de arrancar. Quando tentamos, vêm rápido e com a raiz inteira. Surpresa. Outros parecem frágeis mas não saem nem com muita força na enxada. Pior, dividem-se e sabemos que vão se multiplicar. De qualquer forma, exercitam-se as costas e os peitos tão cedo vão precisar de plástica. E tem gente que paga para ir à academia fazer força. Horas e horas de sol e capina. O marido vem e traz água de coco. Se beijam e ele vai pegar o seu quinhão de jardim. A piscina está tão linda quanto gelada. Alguns minutos de recuperação no colchão de água e outros na cadeira de sol. Teve que tirar o gato para poder deitar. Está carente, meio adoentado e, por isso, ainda mais folgado. Enquanto ela capina, ele se deita perto. E dorme. As crianças vão para o clube com os amiguinhos. Ele pergunta o que vão almoçar e ela, se ele gosta de panqueca de frango. A resposta vem com sorriso e ela vai fazer. Mas antes põe um pouco de ordem na sala. Cozinha. Medidor de xícara. Medidor de colher. Mini multiprocessador. Cozinha equipada é como saber que o guarda chuva está na bolsa para o caso de chover: dá até vontade de usar. A comida dela é só assim, de supetão. Detesta ter que programar alguma coisa, entra em pânico. A receita é da mãe. As boas recordações agora são jóias belas de se ver; já não fazem chorar. Pelo menos, não toda vez. Comem na mesa de xadrez do avô, ele rindo porque ela só cozinha tomando alguma coisa (geralmente uma cerveja que deixa na geladeira o tempo todo para não esquentar nem um milímetro). Chocolate com espresso de sobremesa. O médico disse que só pode comer doce fim de semana depois do almoço. Será que um dia ela vai conseguir ? Cozinha arrumada, volta para a enxada. Ano passado plantaram a grama, que já está linda. Agora ela sonha com as sementes que vai jogar para ano que vem ver tudo florido. Talvez consiga fazer da jardinagem o seu exercício de espera. Toma seu banho e se senta para costurar uma calcinha da filha que descosturou; depois é só ler sobre flores. O marido e as crianças estão na cozinha preparando quiche. Comem e o dia termina com risadas na cozinha. Novamente o edredon macio, o sol e o café. Banho, roupa escolhida de véspera. Pega o carro e vai. Feriado emprensado, trânsito tranqüilo. Estaciona no escritório e vai a pé buscar os óculos que estavam consertando. Na volta, curte um cappuccino na livraria preferida folheando um guia de Londres, lugar onde mora a sua alma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário