Sobre aquilo que conversamos ontem,
TT, o imaginário em torno do amor constrói-se também em função da música que
ouvimos. A forma com que ela registra esse conceito que assimilou expressa-se
tanto na letra quanto na melodia. Nunca se pode reduzir a forma a uma mera
forma[i]. Uma letra[ii], cuja lição é das mais
esplêndidas para nós, que acreditamos de fato no amor, recebeu no final da
década de setenta uma melodia melancólica, que já merece ser reeditada sob a
inspiração mais contemporânea da alegria e do estímulo à produção de sentido
que sua letra revela. Digo produção de sentido não enquanto um sentido pronto e
passível de ser "vendido", que como tal poderia ser
"vestido" e marcar um "estilo". Mas um sentido mais
genuíno, incessantemente produzido; um
sentido que não nega sua relação com o inconsciente, que não nega a ação do
pensamento, das percepções, das sensações, dos sentimentos, das conjunturas da
realidade tal como se apresenta para nós e das motivações que nos afetam[iii]. Conjugo o verbo afetar
como despertar afeto, mesmo. No sentido de despertar em nós a força de Eros,
que por algum motivo o mundo contemporâneo optou por chamar de erótico e muita
gente desconhece a origem do termo[iv]. O poder de Eros é a
força que nos mantém juntos, enquanto elementos que não fazem sentido sem a
articulação que nos coloca em reunião[v]. É possível que o motivo
para nos deleitarmos na companhia uns dos outros hoje em dia esteja além de uma
explicação meramente racional. Mas o fato é que quando nos reunimos, estamos
concretizando uma demanda essencial para qualquer transformação do mundo e de
nós mesmos. Esse contato com a alteridade possibilita que se construam modos de
lidar com a natureza complexa e impermanente das realidades individuais e coletivas.
É uma pena que o imaginário romântico brasileiro - quero dizer a forma como ele
assimila esse produto que a burguesia criou e passou a vender assim que se
inventou como categoria social (usando e vendendo essa imagem idealizada como compensação
para suas frustrações - em parte causadas pela falta de títulos de nobreza e
todas as suas implicações sociais; essa visão burguesa desconsolada de quem
compra gato por lebre) não encontre melhor retrato que na genial
expressão de Alcione[vi].
De um ´meu menino´ - que não é ´meu´ mas, sim, de si próprio - passa-se
para um menino sem juízo, que sequer consegue cuidar de si, imagine de seus
relacionamentos[vii].
De seu envolvimento com tudo, aliás, que vai além do que ela tão sabiamente captou e expressou em sua composição. A música que acompanha essa teorização tão relevante da
nossa precária condição amorosa - de um país em efetivo des-envolvimento[viii] em tantos campos - conserva um it melancólico, mas não a vejo como tão carente de uma
reedição. Ela tem que ser mesmo meio triste. Afinal, além de uma alma de samba, seu conteúdo é não menos
que lamentável enquanto postura diante da vida e das pulsões que nos perfuram o
tão almejado equilíbrio flutuante. Masserizia
nas palavras de Alberti. Um homem que não pode mesmo existir mais, de tão
contemporâneo. Mas ainda há esperanças. Se não fosse assim, não teríamos um
hino[ix] que, a meu ver, coloca
as coisas nos seus devidos termos e aponta para um caminho que merece ser construído.
Aí, sim, conseguimos articular o produto amor às nossas necessidades mais
íntimas. Sob a égide do Barão - que lhe permite resgatar a tão merecida nobreza - e das coisas mais corriqueiras do dia-a-dia, tudo-ao-mesmo-tempo-agora, o amor pode almejar construir a dignidade de que jamais deveria ter se abstido. Não, Barão, a vida não é ´puro êxtase´.
Melhor que não seja, mesmo. Mas ela é ´por você´, afinal, ´meus amigos´, ´por
que a gente é assim?´[x] Isso explica, talvez, o
nome desse blog.[xi]
[i]
Elaborado a partir do que diz Žižek, em "Em
defesa das causas perdidas", Editado pela Boitempo, em 2011, e não sem a
compreensão do pensamento de Leon Battista Alberti, principalmente no De Re Aedificatoria [1452], editado no Brasil apenas em 2012, pela
Hedra sob o título "A arte de construir" (cujo Prefácio e Introdução são magníficos) e pelo indescritível Momus, ainda sem edição no Brasil. Para os que se arriscam no francês, recomendo o L´Art d´Édifier, cuja Introdução e Posfácio constituem a pedra fundamental de qualquer articulação de conhecimento transtemporal que se almeje construir. Pode-se adquiri-lo em http://livre.fnac.com/a1560502/Leon-Battista-Alberti-De-l-art-d-edifier. Já o Momus, pode ser lido on-line em italiano no link http://www.ousia.it/SitoOusia/SitoOusia/TestiDiFilosofia/TestiPDF/Alberti/Momo.pdf. Para os que preferem o inglês, fica a excelente versão bilígue disponível em http://www.amazon.com/Momus-I-Tatti-Renaissance-Library/dp/0674007549/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1359801397&sr=1-1&keywords=momus+alberti. Essa edição é mais uma das coisas que agregam tão bem forma e conteúdo. Inspirados pela leitura
contemporânea de Alberti, somos instigados a dizer, como ele, que na medida em
que constroem seu ambiente, o sujeitos edificam-se a si mesmos. E isso vale
tanto para o âmbito individual quanto coletivo.
[ii]
Refiro-me a "Meu Menino", composição de Ana Terra e Danilo Caymmi, de
1977 ou 1978, acredito. http://letras.mus.br/milton-nascimento/47433/
[iii]
Essa elaboração é muito influenciada pela leitura de um texto específico de
Deleuze, intitulado "Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento", de
1968, editado no Brasil pela Iluminuras, na magnífica coletânea de textos do
autor. A publicação tem o nome de "A Ilha Deserta", e foi preparada
por David Lapoujade.
[iv]
Como bom respeitador do casamento entre forma e conteúdo, Freud deixa isso bem
claro quando explica porque não abre mão de usar o termo "energia
libidinal" quando se refere ao combustível da força constante que nos move
e para qual a língua alemã tem o termo mais adequado para referir-se: Trieb, "palavra pela qual tantas
outras línguas nos invejam", dizia Freud. A respeito do termo libidinal,
ele se preocupava com o fato de abrirmos mão repetida e progressivamente das
coisas até termos aberto mão de tudo. Por isso ele recorria à forma da palavra
para nunca nos deixar esquecer de seu conteúdo mais elementar e precioso (isso está em algum dos volumes da obra completa dele que a Companhia das Letras editou até agora em uma coleção única. Posso localizar se você quiser). As
virtudes da libidine não podem contudo ser analisadas à revelia dos perigos a
que esta nos expõe em seu estado puro. Se cedermos a ela somos sugados e voltamos à
condição humana anterior ao Renascimento, quando ainda não tínhamos nos dados
conta de que o nosso destino pode ser condicionado pelo acaso (sorte, azar, conjunturas), mas
não é determinável por ele, nem tampouco inexorável. Essa condição medieval da estrutura psíquica do
sujeito, ainda longe de ser extinta - foi muito bem retratada pelos versos de Carmina Burana (http://www.das.ufsc.br/~sumar/perfumaria/Carmina_Burana/carmina_burana.htm)
, cujo conteúdo parece ceifar qualquer hipótese de originalidade na percepção
que Alcione imprime na letra citada (ver nota vi,
abaixo). Essa falta de originalidade não se deve a eventuais restrições da
compositora, mas da próprio natureza humana, tão tendenciosa à repetição. A Alcione só tenho a agradecer, especialmente pelo
seu especial talento de nos ensinar pela didática dos contrários. Ela nos alerta a
respeito do que não fazer, exemplo, "Meu mundo é seu". Que meu mundo é
seu, que nada, meu mundo é meu e entra nele quem eu quero.
[v]
Quem quiser ler mais sobre as reflexões que inspiraram a elaboração desse
pensamento, vai encontrar em Alberti, Marx, Freud e em seus "seguidores"
contemporâneos uma inesgotável inspiração. Entre estes posso citar Françoise
Choay, Pierre Caye, Terry Eagleton, Alberto Perez-Gomez, Slavoj Žižek, Alain Badiou, Edgard Morin. É engraçado
como agora com o Twitter, o Facebook e os Blogs o termo "seguidor" ganhou a dignidade pela
qual lutou por tantos séculos. Ser um seguidor não significa mais ser um
fundamentalista, mas apenas querer saber o que o outro tem a dizer, mesmo que discorde. Como bem
nos ensina Žižek ("A visão em
Paralaxe", Boitempo, 2009), ser um fundamentalista é efetivamente não acreditar, pois para
acreditar precisamos da distância crítica que sempre se deve instaurar entre
nós e as coisas. A mestria de Fernando Pessoa remete muito a isso. Ele criava a
distância entre ele e ele mesmo e dava a cada uma delas um caráter diverso na persona
de seus heterônomos. Sua
genialidade ultrapassa quaisquer parâmetros estabelecidos isoladamente por uma disciplina, a cujo isolamento a modernidade tanto se dedicou e que agora se consomem em todos os sentidos. Não é à toa que tanto se tenta reimplantar a
transdisciplinaridade tão corriqueira a Cícero e sobre cujo abandono Alberti tenta nos alertar desde o Renascimento.
[vi]
Refiro-me especificamente a "Menino Sem Juízo", cuja letra acessei,
em 02/02/2013, através do link http://letras.mus.br/alcione/128248/
[vii]
Relacionamentos com tudo, não apenas os interpessoais. Felix Guattari os resumia como
as três ecologias: "do meio ambiente, das relações sociais, da
subjetividade humana" (em livro homônimo, editado pela Papirus). Tendo-se descuidado de todas elas, o homem
desvinculou o crescimento econômico da consideração pelas ecologias, cujos únicos traços
comuns parecem ter-se reduzido às três primeiras letras de seus nomes e à irracionalidade com que
seus protagonistas praticam sua chamada "racionalidade" em ambos. Não é à toa que Hegel já dizia que a insanidade não é desprovida de razão. Hitler esteve por aí para comprovar essa tese de uma vez por todas.
[viii]
Disseco esse termo tão batido e explicito essa sua expressão hifenizada no capítulo
1, intitulado "Desenrolamento",
em
http://hdl.handle.net/1843/BUOS-8YQN5B
[ix]
Refiro-me a "Amor, meu grande amor", composição de Ana Terra e Angela Ro Ro, sobre a qual Cazuza insistiu em trabalhar até inventar uma nova versão musical, gravada junto com o BarãoVermelho.
[x]
Músicas do grupo Barão Vermelho , todas acessíveis, em 02/02/2013, pelo link http://letras.mus.br/barao-vermelho/44415/
[xi] Em homenagem à minha amiga de Itabira, inspiro-me em seu conterrâneo que disse: "E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda? Isso explica, talvez, as coisas desse mundo." (Carlos Drummond de Andrade). Ah, e antes que eu me esqueça, a foto é daquela festa que fizemos aqui em casa, no
dia de finados do ano passado, em homenagem aos cantores falecidos. Claro que não vou contar para ninguém qual deles é você, mas da esquerda
para a direita vemos as versões de Elvis, Janis Joplin, Lacraia, Donna Summer, Hebe e
Joey Ramone.
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