segunda-feira, 12 de abril de 2010

Caminhos ? Não há.

Somos programados porque moramos em prédios que não nos permitem derrubar paredes e configurar o espaço para melhor nos atender. Porque vivemos em cidades tão grandes que não podemos ir a pé para o trabalho e ficamos à mercê do transporte público e dos engarrafamentos. Porque nossos filhos estudam em escolas que não os incentivam a pensar fora da caixa e, quando reclamamos, dizem que estão seguindo o programa. Pode apostar que estão ! Porque assistimos TV, que é uma das interpretações em décimo grau do que um dia fomos capazes de sentir e já nem nos lembramos. Porque optamos por nos distrair, porque optamos por fechar os olhos. Somos programados para morar em lugares que desabam só porque não acreditamos no quão líquido é o mundo até que a nossa casa escorra morro abaixo. Esses tempos líquidos dos quais o Bauman tanto nos alertou e agora se fazem literais em tempestades e alagamentos até que não os ignoremos mais. Somos traídos pelo chão em que pisamos e temos que correr atrás da nossa identidade; como se recompô-la fosse simples como emitir um novo documento. A única forma de esgotar o programa é deixando de retroalimentá-lo, é rompendo o ciclo, é se recusando a se tornar uma imagem líquida a escorrer pela janela brilhante das transmissões. Não temos que nos distrair da nossa "consciência infeliz", já nos disse Hegel. Precisamos enfrentar e dialogar (criar informação nova a partir do conhecimento compartilhado, segundo Flusser). Dedicados como os atletas, concentrados como os ginastas sobre a barra, com a determinação de quem sabe onde quer chegar. "Caminhos não há, mas os pés na grama os inventarão" (Ferreira Gullar)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sabe lá ?


Mesma sala, mesma disciplina, mesmo professor, mesma situação de prova, só eu não era a mesma, pois não estava ali como aluna, pela primeira vez. Nem o papagaio que, em outros tempos, falava tudo, menos as respostas que queríamos para as questões que nos arrancavam suores. Como aplicadora de prova, podia ficar olhando a janela para sentir falta do papagaio. Quando tínhamos aula lá, queríamos que ele sumisse, mas agora sumiu e senti falta. Fiquei com dó daqueles alunos que não precisam ter raiva do papagaio. Enquanto tudo isso acontecia, lia um livro do Alain de Botton em que ele, "nesse exato momento", citou Sêneca e sua tese de que temos raiva porque temos esperança, porque somos otimistas e insuficientemente preparados para as frustrações inerentes à existência. Mais adiante, ele diz que o Terminal 5 do Aeroporto de Heathrow, em Londres, tem mais lojas que a média dos Shopping Centers e que às vezes é criticado por isso. Então expressa sua incompreensão em relação a essa crítica dizendo, em sua costumeira prosa deliciosamente poética, que não entende que ponto essencial da identidade de um edifício aeronáutico foi violado pelo fato dele ter lojas, já que muitas vezes visitamos shoppings mesmo que eles não nos ofereçam o prazer adicional de um portão para Johannesburgo. Em outro trecho, ele vai à livraria e procura por um livro em que uma voz genial expresse emoções que o leitor já sentiu mas nunca entendeu; que revele segredos, coisas do cotidiano que a sociedade prefere não dizer; que possa fazer com que alguém se sinta menos sozinho e estranho. Nessa hora lembro-me do Flusser e sua teoria sobre a linguagem, onde diz que a linguagem foi criada para que o homem se distraísse da falta de sentido do intervalo existente entre o nascimento e a morte. Que a comunicação é um dos melhores recursos para não ficarmos pensando que um dia vamos morrer e que não temos idéia do que virá depois. Vai ver era essa também a angústia do papagaio, sabe lá ?

Obras citadas:
Vilém Flusser - "O mundo codificado"
Alain de Botton - "A week at the airport - A Heathrow Diary"

Foto: Aeroporto de Heathrow Agosto 2007

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Vestígios


Acorda e curte a delícia de edredon. Percebe o sol e levanta rápido. Abre a cortina e vê o dia lindo de abril como um presente. Biquini, filtro solar, mas ainda está frio lá fora. Separa o chapéu e sai do quarto em silêncio. Café fresquinho com leite. Pão fresquinho com manteiga derretendo. Hoje é sábado, então dá para comer um bolinho de sobremesa. Para a mãe dela, todas as refeições tinham que ter sobremesa; e esse é o motivo do restinho de café com leite que sempre fica para arrematar o doce. Doce como ela era. E doce fica o dia. Recolhe as roupas do varal e põe as toalhas na máquina. As louças já estão lá, sacudindo. O barulho das duas funcionando ao mesmo tempo é a música da libertação feminina. Chapéu e óculos a postos, faltam as luvas, a enxada e o saco plástico. Ainda não inventaram uma máquina que capine o jardim. Mas capinando se limpam todos os problemas da vida, como se fosse uma borracha que arranca junto a raiz. Ela poderia estar na Toscana, no sul da França ou em um belo jardim inglês. E se sente assim. A cada ramo que sai, um aprendizado. Alguns problemas, quando olhamos antes de lidar com eles, parecem difíceis de arrancar. Quando tentamos, vêm rápido e com a raiz inteira. Surpresa. Outros parecem frágeis mas não saem nem com muita força na enxada. Pior, dividem-se e sabemos que vão se multiplicar. De qualquer forma, exercitam-se as costas e os peitos tão cedo vão precisar de plástica. E tem gente que paga para ir à academia fazer força. Horas e horas de sol e capina. O marido vem e traz água de coco. Se beijam e ele vai pegar o seu quinhão de jardim. A piscina está tão linda quanto gelada. Alguns minutos de recuperação no colchão de água e outros na cadeira de sol. Teve que tirar o gato para poder deitar. Está carente, meio adoentado e, por isso, ainda mais folgado. Enquanto ela capina, ele se deita perto. E dorme. As crianças vão para o clube com os amiguinhos. Ele pergunta o que vão almoçar e ela, se ele gosta de panqueca de frango. A resposta vem com sorriso e ela vai fazer. Mas antes põe um pouco de ordem na sala. Cozinha. Medidor de xícara. Medidor de colher. Mini multiprocessador. Cozinha equipada é como saber que o guarda chuva está na bolsa para o caso de chover: dá até vontade de usar. A comida dela é só assim, de supetão. Detesta ter que programar alguma coisa, entra em pânico. A receita é da mãe. As boas recordações agora são jóias belas de se ver; já não fazem chorar. Pelo menos, não toda vez. Comem na mesa de xadrez do avô, ele rindo porque ela só cozinha tomando alguma coisa (geralmente uma cerveja que deixa na geladeira o tempo todo para não esquentar nem um milímetro). Chocolate com espresso de sobremesa. O médico disse que só pode comer doce fim de semana depois do almoço. Será que um dia ela vai conseguir ? Cozinha arrumada, volta para a enxada. Ano passado plantaram a grama, que já está linda. Agora ela sonha com as sementes que vai jogar para ano que vem ver tudo florido. Talvez consiga fazer da jardinagem o seu exercício de espera. Toma seu banho e se senta para costurar uma calcinha da filha que descosturou; depois é só ler sobre flores. O marido e as crianças estão na cozinha preparando quiche. Comem e o dia termina com risadas na cozinha. Novamente o edredon macio, o sol e o café. Banho, roupa escolhida de véspera. Pega o carro e vai. Feriado emprensado, trânsito tranqüilo. Estaciona no escritório e vai a pé buscar os óculos que estavam consertando. Na volta, curte um cappuccino na livraria preferida folheando um guia de Londres, lugar onde mora a sua alma.

A fenomenologia da maquiagem ?


Na vida, como em uma paleta de maquiagem, temos as cores. Trabalho, dinheiro, casa, mãe, namorado (agora marido). Mas os melhores pincéis não são os que vêm no estojo. Os bons pincéis são caros e temos que adquiri-los aos poucos, com o passar do tempo. Eles são a experiência. O casamento também é um pincel, mas o entusiasmo por si mesma é aquele pincel que aplica a base, sem o qual a maquiagem não pode começar. Há pincel para tudo: para o canto do olho, quando precisamos dar o realçe final a algo que já está bom. Assim ele faz diferença mas, sozinho, não produz bom resultado. Na vida, esse pincel é o dinheiro. O casamento é um dos pincéis mais usados: aquele que une a cor base da maquiagem (marrom, preto - o seu "eu") à cor que vai amenizar o encontro com a realidade. A realidade é a sombra branca ou de outra cor bem clara, que é a luz. A cor intermediária pode ser qualquer uma: azul, verde, roxo, rosa. Ela só serve para misturar o seu "eu" com a realidade e pode deixar tudo muito mais bonito e harmonioso. Essa cor é o homem da sua vida. Pode ser qualquer um, desde que combine com você e seja bem aplicado com o pincel correto. Essa "segunda cor" nunca é mais importante que a primeira, mesmo que tenha brilho. O delineador é usado para dar a ilusão de que você tem mais cílios; não importa se foi ou não agraciada com essa benesse pela natureza. Cílios nunca são demais. Na nossa vida, o delineador é o trabalho. Ele serve para realçar o que você tem de melhor. É fundamental saber aplicá-lo bem, mas isso exige treino. Já a oportunidade de usar é você quem faz. O rímel é a família de origem. Nenhuma mulher pode ficar sem. O lápis de olho é a família que você cria a partir de si e desse homem que escolheu. Às vezes você chora e ele sai, mas aí você saca o dito cujo da bolsa e aplica de novo. Todo mundo fica melhor com lápis de olho.

Essencial para que o preparo dê certo: Nunca se esqueça que você é um indivíduo e jamais passe tempo demais sem pintar os olhos.

Foto encontrada no site www.makeupgeek.com Fantástico !!!!

quarta-feira, 17 de março de 2010

Mutatis mutandis



Pois é, como não existe nada definitivo, gostaria de acrescentar algumas coisas na postagem que fiz dia 27 de fevereiro. Hoje percebi que considerei a relação homem-edifício mais pelo lado interno que externo, mais pelo funcionário que lá vai trabalhar que pela interação entre esse funcionário e o mundo exterior ao centro administrativo. Há um grupo de pessoas que acham óbvio que manifestações vão ocorrer lá, já que há uma área designada para esse fim, com "palanque" e tudo. Porém, quando eles perceberem que as manifestações ali dentro não causam impacto, vão fechar a rodovia (como já ocorreu) e, se não alcançarem seus objetivos, farão passeatas ao longo da rodovia. E isso parece óbvio. O isolamento de todos em uma região ainda amorfa gera esse tipo de circunstância, mas eu não havia me dado conta disso logo de cara. Mas acho também que não se deveria deixar de fazer só por causa dessa eventualidade, que fique bem claro. Essa discussão começou porque falávamos da recente proibição de manifestações públicas na Praça da Estação, cuja reforma foi projetada inclusive para esse fim. Voltamos à ditadura ? Mutatis mutandis !!!!
p.s. A foto é uma tentativa de manifestar aqui o sonho que tenho de chegar de metrô (ou trem, ou qualquer meio de transporte público, rápido e eficiente) ao Aeroporto de Confins. Foi feita a linha verde, mas Mutatis mutandis ! Bem que o Harry Potter podia nos ensinar esse feitiço !

segunda-feira, 8 de março de 2010

Novas leituras


Li recentemente A República dos Bons Sentimentos, do Michel Mafesoli. O já conhecido espírito esclarecido do autor para interpretar os indícios do que seu tempo tende a projetar para o futuro, extrapola todas as expectativas ao nos mostrar o quanto a vida cotidiana é importante na elaboração de um pensamento/trabalho arrojado e audacioso. O mais importante elemento, segundo ele, é a preocupação genuína com a coletividade. "E por mais paradoxal que possa parecer, a verdadeira subversão teórica consiste em estar sintonizado com o senso comum". O princípio de Habermas - da emancipação - segundo Mafesoli, foi substituído pelo sentido de estar-junto e, nessas condições, propor novas soluções. Não é uma questão de oferecer respostas prontas, já elaboradas desde o século XIX ou nos anteriores, mas criar novas perguntas direcionadas aos valores do cotidiano, obtendo, assim, novas respostas. Entre as várias idéias compartilhadas pela Arquiconfraria, está aquela em que ele cita Jung: "a prática da ciência não é um combate cujo objetivo é ter razão, mas um trabalho que contribui para aumentar e aprofundar o conhecimento".
Na corrente desses pensamentos, gostei muito de um programa criado pelo Alain de Botton, chamado Living Architecture. A inspiração dele é possibilitar que as pessoas experimentem viver em um espaço projetado por arquitetos famosos. As casas estão sendo construídas e poderão ser alugadas por temporada, na Inglaterra. Mais informações
http://www.living-architecture.co.uk
Desse modo, diversos dos elementos que prezamos, como domesticidade, praticidade, conforto, aconchego, etc, quem sabe poderão ser medidos para averiguarmos se nossas decisões arquitetônicas vão de encontro às aspirações humanas ou demandam uma mudança de trajetória.
A foto é de uma casa modernista em Londres, projetada pelo Ernö Goldfinger, na década de 1930. Observem como ela está em sintonia com os demais edifícios da rua, apesar de apresentar uma forma e uma dinâmica totalmente diferentes do entorno. Recomendo a visita. É a única casa modernista tombada pelo patrimônio histórico inglês.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Alcoolivro

Hoje tive vontade de dizer ao mundo que me embriaguei. E que retomei esse vício ontem de tarde. A mesa em que me sentei para beber termina em "ar", mas não é de bar, é de carteira escolar. Entre conversas descontraídas e trocas de imenso conteúdo, tomei um longo porre com meus colegas. É um vício de muitos anos, desde a mais tenra infância. A adega-biblioteca de casa sempre foi recheada de delícias irresistíveis e, não satisfeita com o que bebia na escola, bebia mais em casa. As festas-provas eram desculpa para farras intermináveis entre destilados-técnicos e fermentados-filosóficos. Para suportar o denso scotch-física, buscava o suavidade do vinho-poesia. E conseguia encontrar um jeito de sobreviver consumindo-os ao mesmo tempo. Ainda bem, porque troquei o scotch-física pela tequilarquitetura, que com sal-lápis e limão-papel me deixam horas acordada, embevecida. Mas o vinho-poesia continua companheiro para as horas em que nada mais apetece. Sim, sou alcóolivra e é bom que eu diga isso o quanto antes. Não posso passar perto de um livro que o abro, de uma livraria, que entro. Meu sonho é um dia doar todos os livros para a biblioteca e depois morrer. Mas ainda vou me embriagar muito antes disso.
p.s. A sala de aula da foto é do século XIX, na Noruega.