Uma das maneiras de se pensar a favela é como sintoma. Isso a faz produto de "um fenômeno de recalque, que como todos os fenômenos de recalque, está ligado às necessidades do decoro." (LACAN, Meu ensino, p.74). A favela é produto desse fenômeno; dele provém, mas não sem provê-lo. Difícil de ser descrita a partir do vocabulário urbanístico convencional, a favela é referenciada como "formação espontânea do tecido urbano". Muitas vezes é por isso também reverenciada.
Povoada de fervilhantes excitações, a favela acolhe e produz necessidades pulsionais. Melhor definida por analogias que por conceitos estabelecidos, a favela articula-se a um repositório de representantes tanto de Eros quanto de Caos. Governada pela lei da saciedade e pela pulsão de repetição que resulta disso, sua carência primordial aponta para uma necessidade de organização e de decoro. O decoro de que aqui se trata é ciceroniano: temperança e moderação com que o sujeito exercita e aprende a regrar e controlar, através de renúncias parciais, a intensificação do desejo e de suas pulsões sem, contudo, negá-los.
Um dos efeitos da pulsão de repetição é a repressão da relação com o tempo. Essa repressão leva a reboque a supressão da capacidade de transformação. Um sintoma disso é o sofrimento. O sofrimento de ser alheio ao tempo, em todos os sentidos. Sem uma relação com o tempo, com a "Passagem das Horas", não há transformação. E de que transformação se trata? Transformação da qualidade de energia, pode-se dizer. Considerada altamente mobilizável, trata-se de conduzir essa energia para a produção de descargas mais proveitosas ao fortalecimento organizacional de que essa formação urbana ou suburbana carece.
Esse "organizacional" tem ampla significação: os órgãos do corpo e dos sentidos, os organismos que os reúnem e os colocam em relação, as instituições que, representando-os, fundam e viabilizam sua organização, seus limites, seu funcionamento conjunto. Uma transformação permeada pela vizinhança e influência do mundo externo, organizada para o acolhimento dos estímulos e a proteção diante deles (FREUD, 1933). Para funcionar dessa forma, é necessário haver uma compreensão desses estímulos e da potência dessa energia cuja mobilidade a torna tão valiosa quanto desafiadora. Não parece possível lidar com essa energia sem percebê-la pelos sentidos, inclusive através de suas relações com o desejo, o afeto, o pensamento.
Uma das maneiras de se abordar essa energia é interpelando-a por meio dos objetos. Objetos que funcionem como representantes desse organismo que se almeja fortalecer, e que não bloqueiem a passagem dessa energia. É necessário acolhê-la, participando do trabalho de transformá-la em algo que favoreça o fortalecimento desse organismo. Um organismo aberto a sentir tudo de todas as maneiras, a poder ter todas as opiniões, a ser sincero contradizendo-se a cada minuto. Um organismo que não se priva de desagradar-se a si próprio, e que "se joga" ao amar as coisas e o mundo. Um organismo aberto a um diálogo contínuo e não-linear, literal e metafórico, que desliza para o metonímico sem negar seus deslizes. Um organismo aberto a tudo isso e ao resto disso tudo. Um organismo em situação de passagem, errante, que assim se coloca para ter lugar e ir além dos tolos que erram desejando-o hermético, congelado. Um organismo cujo princípio é um não-todo onde sempre falta alguma coisa, mas a dor de viver não está ausente. A vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa, tanto mais doída quanto mais se sente e se roça contra as coisas (PESSOA, 1916). Mas, para o organismo que se inventa, é melhor a dor disso que o indecoroso sofrimento.
p.s.1. Os "issos" de que aqui se fala são
inspirados pelo O Eu e o Isso, de
Freud [1923] e pelas Novas Conferências Introdutórias
à Psicanálise, especialmente a de número 31 [1933]. O que Freud chama de Eu,
passa aqui pela ideia do organismo que se almeja fortalecer. Evidenciam-se
nessa articulação as influências de Alberti, Deleuze, Guattari, Richard Sennett. Desse
último, chama atenção a reflexão sobre sistemas abertos e fechados, a que
podemos ter acesso em http://www.youtube.com/watch?v=0uyHey4QuUE. A foto testemunha efeitos dessa disposição conjunta de sistemas que assumem a condição de sintoma até no nome da região em que se instauram: "Porto Maravilha", a afirmação de uma negação? (Rio, março de 2013). Mas
este texto também não é sem uma articulação seminal com Lou Salomé [1911] e Fernando
Pessoa [1916]. Deste último, chega a apropriar-se de frases inteiras da "Passagem das Horas", cujo teor pode ser
apreciado na íntegra em http://arquivopessoa.net/textos/814. De Salomé (The
Erotic, 2012) fica o recado: em toda esfera de vida animal, as pulsões se
sujeitam às mesmas leis do desejo e da saciedade, da excitação diminuída pela
repetição, e da necessidade de mudança que resulta disso. O trabalho do
intelecto pode tornar o sujeito consciente desse processo, e afastá-lo das
intensificações de padrão animal, ao imprimir critérios e limites à energia
psíquica que o coloca em ação.
p.s.2. Este texto também pode ser lido substituindo-se "favela" por "condomínio fechado", "espontâneo" por "anti-espontâneo" e "fervilhantes" por "petrificantes".
p.s.2. Este texto também pode ser lido substituindo-se "favela" por "condomínio fechado", "espontâneo" por "anti-espontâneo" e "fervilhantes" por "petrificantes".
Nenhum comentário:
Postar um comentário