Conforme combinado com os alunos, já que a tradução que fiz a seguir é uma adaptação dos últimos parágrafos do texto da Lou Salomé para o propósito do debate que fizemos em sala de aula dia 11/06/2013, seguem - ao final deste post - esses parágrafos na íntegra. Reitero que o objetivo do debate era discutir os projetos de arquitetura e urbanismo em prática atualmente em Belo Horizonte, cuja anatomia - como em qualquer assentamento humano - produz efeitos nos sujeitos que ali habitam. Os efeitos da capacidade mental dos sujeitos estendem-se à sua capacidade de organização em sociações, de habilitar-se para o exercício da política e para a produção da condição de república efetivamente democrática em uma sociedade. Quanto a esses quesitos, as propostas do vídeo postado acima, remetem a contrapontos que clamam pelo diálogo e pela crítica consciente dos cidadãos que por isso se interessem.
Lido ao final do debate, os parágrafos abaixo compõem-se de uma tradução livre do texto de Salomé que, escrito originalmente em alemão, recebeu uma tradução para o inglês publicada em 2012:
Considera-se que a realização mais suprema e rara consiste não em descobrir o desconhecido, proclamar o inacreditável, mas explorar a existência diária, as possibilidades abertas a todos para a máxima riqueza de seu potencial de realização enquanto ser humano.
Mesmo as coisas fisicamente distantes e aparentemente
inacessíveis são nossas, são parte de nossa vida, constituem nossa paisagem e
inspiram a coragem de viver e agir com amor, impelidos por novos sonhos que
animam nossos passos. Essa coragem não pode ser fragmentada em especializações
ou transcrita em uma linguagem que chega a ser vulgar ao expor as coisas como
se fossem claramente visíveis. As coisas banais é que são claras e só se fazem
decifrar por vagas sensações, incapazes de identificar de onde provêm e o que
as causa.
O trabalho do sujeito sobre si mesmo, difícil e íntimo,
também se realiza na experiência compartilhada: a tentativa de dedicar-se ao
que de mais elevado o nosso olhar puder alcançar, de modo a transmutá-lo para a
experiência cotidiana. Através desse intenso esforço, a experiência torna-se
ato criativo, podendo ser implantada a uma profundidade tal que assegure sua
presença tanto nos menores detalhes quanto na percepção do conjunto em que se
exprime.
O fluxo dessa energia criativa já não se encontra suspenso
no vazio, mas encarnado nos atos e pensamentos desde sua manifestação mais
pessoal. A forma do sentimento que se tem não é tão importante quanto a
presença da coisa em si. As formas, enquanto provas sensíveis do compartilhar
das vivências, não podem gabar-se de um conteúdo que não é inerente a elas. Seu
conteúdo é simbolizado em experiências concretas que resultam em lugares que
não devemos buscar como solução em si, pois somos facilmente enganados por seu
caráter nem um pouco fora do comum. Enganados, mergulhamos na busca
interminável por aquilo que é mais brutalmente visível, mais comumente
"real", como se entre os símbolos internos dos sonhos e íntimos
encantamentos que nessas formas dormem, acreditássemos estar diante da presença
do sublime, e o mais próximos possível da maior amplitude da vida.
A vida só existe enquanto milagre que constantemente
renuncia sua própria condição de milagre, "feito quem desce da rede para
ir ao jardim" *.
* Tomei a liberdade de acrescentar a essa tradução a citação de um trecho da letra de Kristoff Silva, na música
intitulada "A voz e o verso", presente do CD "Deriva", de
2013. Esta frase de Kristoff e as palavras de Lou Salomé constroem uma ponte
que passa por algumas reflexões de Freud. No final do livro intitulado "Cândido",
o escritor e filósofo francês Voltaire afirma que devemos cultivar nosso
jardim, e essas palavras inspiram Freud a relacionar esse cultivo a distrações
e diversões, entre as quais inclui-se a atividade intelectual. Atividades desse
gênero, que instiguem o intelecto a agir, são imprescindíveis ao
fortalecimento dos sujeitos pois, segundo Freud, afastam três grandes males: o tédio, o vício e
a miséria. (FREUD, 2011, p.18).
Ítalo Calvino também discorre sobre essa frase de Voltaire, não sem estabelecer uma ponte de ligação transtemporal com a contemporaneidade:
Fonte: CALVINO, 1993, p.112.
Entre as questões que essa ponte enuncia, inclui-se aquela que indaga sobre os efeitos de se copiarem formas de arquiteturas e cidades de outros tempos e lugares, ao invés de se trabalhar - "com empenho prático-responsável-concreto" - sobre a interpretação do passado e mesclá-lo ao presente em múltiplas e não-lineares tentativas de condicionar novas possibilidades de futuro. Dito isso, torna-se inevitável desejar que em cada arquiteto, urbanista, e principalmente em cada fruidor dos espaços urbanos crie-se aquele capaz de, como diz Kristoff, "notar no de sempre uma súbita luz passageira e, no que há de mais novo, rever toda a antiguidade". A partir de uma tal postura interpretativa diante das coisas e dos fatos, ficamos expostos à possibilidade de sermos invadidos, tomados, por "uma beira de espanto no olhar." É aí que nos tornamos sujeitos da história, é aí que começamos a nos capacitar para a transformação de nossas realidades. O momento desse nascimento também não escapa a Fernando Pessoa, que diz:
Ítalo Calvino também discorre sobre essa frase de Voltaire, não sem estabelecer uma ponte de ligação transtemporal com a contemporaneidade:
Entre as questões que essa ponte enuncia, inclui-se aquela que indaga sobre os efeitos de se copiarem formas de arquiteturas e cidades de outros tempos e lugares, ao invés de se trabalhar - "com empenho prático-responsável-concreto" - sobre a interpretação do passado e mesclá-lo ao presente em múltiplas e não-lineares tentativas de condicionar novas possibilidades de futuro. Dito isso, torna-se inevitável desejar que em cada arquiteto, urbanista, e principalmente em cada fruidor dos espaços urbanos crie-se aquele capaz de, como diz Kristoff, "notar no de sempre uma súbita luz passageira e, no que há de mais novo, rever toda a antiguidade". A partir de uma tal postura interpretativa diante das coisas e dos fatos, ficamos expostos à possibilidade de sermos invadidos, tomados, por "uma beira de espanto no olhar." É aí que nos tornamos sujeitos da história, é aí que começamos a nos capacitar para a transformação de nossas realidades. O momento desse nascimento também não escapa a Fernando Pessoa, que diz:
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a
esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo [...]
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
(PESSOA,
2001, p.26)
Em meio ao espanto, aos silêncios e às narrativas tecidas
pelos passos nessa superfície de contato com a realidade (o solo: "a pele que habito"), encontram-se atos e
reflexões que possibilitam ao cidadão construir aquilo que o futuro lhe
concederá. Afinal, como diz Guimarães Rosa (2005, p.113.): "Quando nada
acontece, há um milagre que não estamos vendo."
Últimos parágrafos de The erotic (2012), de Lou Salomé, escrito ao longo da primeira década do século XX e publicado, em alemão, em 1911:
"For the
supreme and rarest achievement is not to discover the unknown, to proclaim the
incredible, but to explore day-to-day existence, the possibilities open to all,
to the full richness of its potential fulfillment in the human spirit. Just as
we believe, on a foggy morning, that we are walking on level ground until the
sun dissipates the fog and we see the light fall on the mountaintops, which are
often so isolated from the earth by clouds that they seem phantasmagorical -
always higher, always more remote, and despite all this most inaccessible are
still ours, still also part of our life: are our landscape.
However,
the courage to love and to live, inspired by the sight of summits such as
these, that compels us to new dreams and animates our steps, cannot be broken
down into further specialization or transcribed into language, notwithstanding
a certain vulgarization and an illumination which gives them the clarity of
daylight - and also the clarity of the banal - we can only decipher them in
vague generalities, so remote from any separation and division into precise
fragments, as if, for example, we imagined ourselves in a flight of angels,
able only to distinguish bright wings and faces, with no knowledge of their
names. If this work on the self, the most secret and the most demanding there
is, also becomes in reality a shared experience between two beings, then it is
already like a two-person religion: the attempt to enter into a personal and
shared relationship with the highest thing our gaze can reach, in order to
transmute it into everyday experience. By this very effort, experience becomes a creative act, and is no longer
accessible except in this capacity: implanted, in consequence, in a secret life
much deeper, much more safely shielded from profane eyes, than even the best
hidden secrets of love. For while love is obliged either to dissimulate
consciously, i.e., to hide behind an alien principle, or to expres itself
aloud, that is to say pathetically, as demanded by the overflow of its
exuberant feelings, here, so to speak, feeling is no longer suspended in the
void, but instead is incarnate in the most personal acts and thoughts, no
longer seeking, in the form of feeling, but in its turn receiving all things
into itself - and entirely present in all things, even the smallest [...].
Just as
certainly as forms, envelops, senseless proofs of community of life cannot,
without risk of being unmasked, boast a content that should never have entered
into them, equally certainly this content is constantly symbolized in
concretely experienced results in places where we would never look for them,
deceived as we are by their everyday character. And thus deceived, we doubtless
wander thousands of times, in that which is most coarsely visible, most
ordinarily "real", as among the external symbols of the dreams which
sleep in them, of intimate enchantments, without guessing that we are in the
presence of the sublime, and closer than ever to the perfect fullness of life.
For all life exists only as miracle that constantly renounces its
miraculousness."
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
PESSOA, Fernando. Poesia: Alberto Caieiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ROSA, João Guimarães. "O Espelho" In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
SALOMÉ, Lou Andreas. The erotic [Die Erotik, 1911]. New Jersey: Transaction Publishers, 2012.
O "Cândido", de Voltaire, está disponível para download no dominiopublico.gov.br
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2239
Vídeo "Cidade da Cultura", disponível em http://www.youtube.com/watch?v=OZt3JLbCA7Q, acesso em 22/06/2013.
Referências
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
PESSOA, Fernando. Poesia: Alberto Caieiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ROSA, João Guimarães. "O Espelho" In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
SALOMÉ, Lou Andreas. The erotic [Die Erotik, 1911]. New Jersey: Transaction Publishers, 2012.
O "Cândido", de Voltaire, está disponível para download no dominiopublico.gov.br
Vídeo "Cidade da Cultura", disponível em http://www.youtube.com/watch?v=OZt3JLbCA7Q, acesso em 22/06/2013.