sábado, 22 de junho de 2013

Realidades em debate




Conforme combinado com os alunos, já que a tradução que fiz a seguir é uma adaptação dos últimos parágrafos do texto da Lou Salomé para o propósito do debate que fizemos em sala de aula dia 11/06/2013, seguem - ao final deste post - esses parágrafos na íntegra. Reitero que o objetivo do debate era discutir os projetos de arquitetura e urbanismo em prática atualmente em Belo Horizonte, cuja anatomia - como em qualquer assentamento humano - produz efeitos nos sujeitos que ali habitam. Os efeitos da capacidade mental dos sujeitos estendem-se à sua capacidade de organização em sociações, de habilitar-se para o exercício da política e para a produção da condição de república efetivamente democrática em uma sociedade. Quanto a esses quesitos, as propostas do vídeo postado acima, remetem a contrapontos que clamam pelo diálogo e pela crítica consciente dos cidadãos que por isso se interessem.

Lido ao final do debate, os parágrafos abaixo compõem-se de uma tradução livre do texto de Salomé que, escrito originalmente em alemão, recebeu uma tradução para o inglês publicada em 2012:

Considera-se que a realização mais suprema e rara consiste não em descobrir o desconhecido, proclamar o inacreditável, mas explorar a existência diária, as possibilidades abertas a todos para a máxima riqueza de seu potencial de realização enquanto ser humano.
Mesmo as coisas fisicamente distantes e aparentemente inacessíveis são nossas, são parte de nossa vida, constituem nossa paisagem e inspiram a coragem de viver e agir com amor, impelidos por novos sonhos que animam nossos passos. Essa coragem não pode ser fragmentada em especializações ou transcrita em uma linguagem que chega a ser vulgar ao expor as coisas como se fossem claramente visíveis. As coisas banais é que são claras e só se fazem decifrar por vagas sensações, incapazes de identificar de onde provêm e o que as causa.
O trabalho do sujeito sobre si mesmo, difícil e íntimo, também se realiza na experiência compartilhada: a tentativa de dedicar-se ao que de mais elevado o nosso olhar puder alcançar, de modo a transmutá-lo para a experiência cotidiana. Através desse intenso esforço, a experiência torna-se ato criativo, podendo ser implantada a uma profundidade tal que assegure sua presença tanto nos menores detalhes quanto na percepção do conjunto em que se exprime.
O fluxo dessa energia criativa já não se encontra suspenso no vazio, mas encarnado nos atos e pensamentos desde sua manifestação mais pessoal. A forma do sentimento que se tem não é tão importante quanto a presença da coisa em si. As formas, enquanto provas sensíveis do compartilhar das vivências, não podem gabar-se de um conteúdo que não é inerente a elas. Seu conteúdo é simbolizado em experiências concretas que resultam em lugares que não devemos buscar como solução em si, pois somos facilmente enganados por seu caráter nem um pouco fora do comum. Enganados, mergulhamos na busca interminável por aquilo que é mais brutalmente visível, mais comumente "real", como se entre os símbolos internos dos sonhos e íntimos encantamentos que nessas formas dormem, acreditássemos estar diante da presença do sublime, e o mais próximos possível da maior amplitude da vida.
A vida só existe enquanto milagre que constantemente renuncia sua própria condição de milagre, "feito quem desce da rede para ir ao jardim" *.

* Tomei a liberdade de acrescentar a essa tradução a citação de um trecho da letra de Kristoff Silva, na música intitulada "A voz e o verso", presente do CD "Deriva", de 2013. Esta frase de Kristoff e as palavras de Lou Salomé constroem uma ponte que passa por algumas reflexões de Freud. No final do livro intitulado "Cândido", o escritor e filósofo francês Voltaire afirma que devemos cultivar nosso jardim, e essas palavras inspiram Freud a relacionar esse cultivo a distrações e diversões, entre as quais inclui-se a atividade intelectual. Atividades desse gênero, que instiguem o intelecto a agir, são imprescindíveis ao fortalecimento dos sujeitos pois, segundo Freud,  afastam três grandes males: o tédio, o vício e a miséria.  (FREUD, 2011, p.18)

Ítalo Calvino também discorre sobre essa frase de Voltaire, não sem estabelecer uma ponte de ligação transtemporal com a contemporaneidade: 
Fonte: CALVINO, 1993, p.112.

Entre as questões que essa ponte enuncia, inclui-se aquela que indaga sobre os efeitos de se copiarem formas de arquiteturas e cidades de outros tempos e lugares, ao invés de se trabalhar - "com empenho prático-responsável-concreto" - sobre a interpretação do passado e mesclá-lo ao presente em múltiplas e não-lineares tentativas de condicionar novas possibilidades de futuro. Dito isso, torna-se inevitável desejar que em cada arquiteto, urbanista, e principalmente em cada fruidor dos espaços urbanos crie-se aquele capaz de, como diz Kristoff, "notar no de sempre uma súbita luz passageira e, no que há de mais novo, rever toda a antiguidade". A partir de uma tal postura interpretativa diante das coisas e dos fatos, ficamos expostos à possibilidade de sermos invadidos, tomados, por "uma beira de espanto no olhar." É aí que nos tornamos sujeitos da história, é aí que começamos a nos capacitar para a transformação de nossas realidades. O momento desse nascimento também não escapa a Fernando Pessoa, que diz:

Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo [...]
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
(PESSOA, 2001, p.26)

Em meio ao espanto, aos silêncios e às narrativas tecidas pelos passos nessa superfície de contato com a realidade (o solo: "a pele que habito"), encontram-se atos e reflexões que possibilitam ao cidadão construir aquilo que o futuro lhe concederá. Afinal, como diz Guimarães Rosa (2005, p.113.): "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo."
           

Últimos parágrafos de The erotic (2012), de Lou Saloméescrito ao longo da primeira década do século XX e publicado, em alemão, em 1911:

"For the supreme and rarest achievement is not to discover the unknown, to proclaim the incredible, but to explore day-to-day existence, the possibilities open to all, to the full richness of its potential fulfillment in the human spirit. Just as we believe, on a foggy morning, that we are walking on level ground until the sun dissipates the fog and we see the light fall on the mountaintops, which are often so isolated from the earth by clouds that they seem phantasmagorical - always higher, always more remote, and despite all this most inaccessible are still ours, still also part of our life: are our landscape.
However, the courage to love and to live, inspired by the sight of summits such as these, that compels us to new dreams and animates our steps, cannot be broken down into further specialization or transcribed into language, notwithstanding a certain vulgarization and an illumination which gives them the clarity of daylight - and also the clarity of the banal - we can only decipher them in vague generalities, so remote from any separation and division into precise fragments, as if, for example, we imagined ourselves in a flight of angels, able only to distinguish bright wings and faces, with no knowledge of their names. If this work on the self, the most secret and the most demanding there is, also becomes in reality a shared experience between two beings, then it is already like a two-person religion: the attempt to enter into a personal and shared relationship with the highest thing our gaze can reach, in order to transmute it into everyday experience. By this very effort, experience becomes a creative act, and is no longer accessible except in this capacity: implanted, in consequence, in a secret life much deeper, much more safely shielded from profane eyes, than even the best hidden secrets of love. For while love is obliged either to dissimulate consciously, i.e., to hide behind an alien principle, or to expres itself aloud, that is to say pathetically, as demanded by the overflow of its exuberant feelings, here, so to speak, feeling is no longer suspended in the void, but instead is incarnate in the most personal acts and thoughts, no longer seeking, in the form of feeling, but in its turn receiving all things into itself - and entirely present in all things, even the smallest [...].


Just as certainly as forms, envelops, senseless proofs of community of life cannot, without risk of being unmasked, boast a content that should never have entered into them, equally certainly this content is constantly symbolized in concretely experienced results in places where we would never look for them, deceived as we are by their everyday character. And thus deceived, we doubtless wander thousands of times, in that which is most coarsely visible, most ordinarily "real", as among the external symbols of the dreams which sleep in them, of intimate enchantments, without guessing that we are in the presence of the sublime, and closer than ever to the perfect fullness of life. For all life exists only as miracle that constantly renounces its miraculousness." 


Referências

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

PESSOA, Fernando. Poesia: Alberto Caieiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

ROSA, João Guimarães. "O Espelho" In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SALOMÉ, Lou Andreas. The erotic [Die Erotik, 1911]. New Jersey: Transaction Publishers, 2012.

O "Cândido", de Voltaire, está disponível para download no dominiopublico.gov.br
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2239

Vídeo "Cidade da Cultura", disponível em  http://www.youtube.com/watch?v=OZt3JLbCA7Q, acesso em 22/06/2013.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

O Espaço Público da Rua

                        Carmina Burana - Fortuna Imperatrix Mundi 

                                         Carl Orff, 1936


Instituídos em sociações onde as relações criem espaço para o diálogo e o questionamento, os sujeitos ativos do desenrolamento não aceitam os conflitos socio-econômicos como inevitáveis, mas os politizam, abrindo-os à discussão (ABRAHÃO, 2008). Identificados como sintomas, os conflitos tornam-se alvo da verdadeira subversão: o levantamento de questões como ponto de partida para a elaboração de exigências locais e especificas; as únicas capazes de promover transformações na realidade (ŽIŽEK, 2011). O sujeito histórico da transformação social é um "arquipélago de subjetividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas." (SANTOS, 2010, p.107). No processo de perceber suas necessidades individuais, relacionar-se com a alteridade (seres, objetos e instituições) e haver-se com os meios de atender suas demandas, o sujeito sempre poderá errar, mas "errará cada vez melhor" (ŽIŽEK, 2011). O produto improvisado de seu esforço conjunto pode ser superado, a cada tempo, por uma nova tentativa, por uma nova solução da qual cada singularidade não se esquivou de participar. Se as cidades refletirem demandas coletivas, pode-se esperar que exibam uma variedade tão rica quanto a dos próprios seres humanos(RYBCZYNSKI, 2010). O conflito, a divisão, a instabilidade não prejudicam a esfera pública; são condições necessárias à sua existência. Manifestações são parte dos instrumentos anti-hegemônicos que questionam a ordem estabelecida (SANTOS, 1988). A ameaça efetiva consiste no esforço de se anularem esses acontecimentos (ABRAHÃO, 2008). "O perigo é a política vir a desaparecer inteiramente do mundo." (ARENDT, 2010, p.148).

A esfera pública não é apenas o lugar do diálogo e do encontro, mas é também o lugar construído por esses elementos e onde residem as ambiguidades; o encontro das diferenças. E mesmo que tenha sido construído para o encontro só a construção pelo encontro, ao longo do tempo, legitima e confere sentido a esse lugar (ALBERTI, 2004). "Sentido" é aqui abordado como instrumento de crítica, não um reservatório, princípio, origem ou finalidade, mas um efeito criador que ultrapassa as percepções e orienta criticamente a articulação entre pensamento e ação (DELEUZE, 2006). O desmantelamento dos monopólios possibilita sua substituição por infinitas comunidades interpretativas que não renunciam ao trabalho sobre a interpretação de suas realidades; que não aceitam ficar entregues à própria sorte. Seu agir conjunto de palavra, ritmo e gesto é como o dos coros que, nos Carmina Burana, atuam como se fossem solistas. Essa polifonia é contra as verdades fortes; tantas vezes vazias, imprudentes e autoritárias. (SANTOS, 2010). A potência das diferentes vozes em uníssono define o impacto que seu canto provoca. Seu poder reside na relação que estabelecem entre si e que é reforçado pela postura e movimento que assumem em conjunto no espaço concreto onde se inserem: o espaço público da rua.

A rua, como espaço que possibilita interação com a alteridade, é lugar para o encontro das diferenças, onde acontece o processo de aprimoramento da condição humana. Relacionada a significados e funções públicas, a rua é aberta à presença dos cidadãos independentemente de dia e hora, em espaços geralmente localizados entre as pistas de rolamento e as divisas dos terrenos. Esses lugares, via de regra, recebem o nome de passeio, passeio público, calçada. Como passeio, fazem analogia à errância, ao movimento que torna a presença dinâmica e possibilita o deslocamento para outra posição, para outro ponto de partida. Como calçada, remete a estar (re)vestido apropriadamente para a freqüência social. Podem ocorrer ainda como largos que, do francês enceinte, trazem a conotação do espaço interior onde algo é gerido, criado; nesse caso o âmbito coletivo, a coisa pública; a res publica (CHOAY, 2011). O espaço público da rua é lugar frutífero para a criação e ampliação da condição de república em uma sociedade. Vestindo a rua com seu corpo e com sua presença ativa, o cidadão acorda para combater a nudez que o priva de toda dignidade.



REFERÊNCIAS
ABRAHÃO, Sérgio Luís. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Annablume, 2008.
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
ALBERTI, Leon Battista. L’art d’édifier. Paris: Seuil, 2004.
CHOAY, Françoise. La terre qui meurt. Paris: Fayard, 2011.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.
RYBCZYNSKI, Witold. Makeshift metropolis: ideas about cities. New York: Scribner, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2010.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A cidade como um jogo de cartas. São Paulo: Projeto Editores, 1988.
ŽIŽEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011.


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Arquiconfraria no Streetbook


Arquiconfraria é Streetbook: encontros que "chegam antes e além" da fachada, acontecem ao vivo e a cores, quando a gente fala, ri, chora (eu, pelo menos, sempre), abraça, despede, volta, despede de novo mas não vai embora, curte de verdade, "de mermo" como se diz na terra onde nasci pela primeira vez (mas isso já tem tanto tempo que nem sei se já virou gíria de museu... kkk) 

Hoje a Arquiconfraria aconteceu em um espaço aberto e coberto, em frente a um elevador, num Lugar - assim mesmo, com letra maiúscula, porque foi a gente que "fez"  - favorecido por um aconchegante recanto de peitoril de janela e fartos pilares; onde nos sentamos entre pedras e tijolos à vista para expor nossas almas sem reboco. Conversas de corredor que rompem com a correria, corrompem a solidesilusão e irrompem em entusiasmo para o que há de vir!!!


Melhor que isso, só na beira da lareira da casa da Juliana (foto acima), em Bloomsbury, com o Augusto na bateria e o Kristoff (citação acima) no vocal.... Tudo isso ainda é maquete e, de algum modo muito estimulante, sempre será...